Vivências de
uma época (original exposto em “São Paulo minha cidade em 01-10-2008)
Manoel dos
Santos, conhecido pelo apelido de Salas por alguns e por outros de Piscais,
veio com a esposa Maria de Melo Amaro, trazendo na bagagem somente esperança e
muita vontade de trabalhar. Não tinham estudo algum e as "letras da
primeira classe" foram feitas para o gasto daquilo que era necessário para
o cotidiano. Vinha "recomendado", o que quer dizer que havia alguém
estabelecido que se responsabilizava e comprometia-se a fixar-lhe com trabalho.
No "Bilhete de Identidade do Instituto de Criminologia de Coimbra",
Portugal, consta(va), no documento nº. 86696, como profissão "operário
apícola".
O senhor
Salas, nome de guerra dos tempos idos dos quartéis de cavalaria da antiga
metrópole portuguesa, aportou por estas paragens brasileiras na década de 20.
Homem forte e sem preguiça, acostumado à labuta diária, como tantos outros
patrícios que vieram para o Brasil trabalhar por falta de mão de obra no campo.
Ao aportar
em São Paulo, foi encaminhado para exercer o trabalho de jardineiro para a
família de Julitta Prado Alves de Lima, em Higienópolis, número 8, com registro
feito em 21 de novembro de 1927, em documento expedido pela "Directoria de
Fiscalisação do Serviço Domestico", lei nº. 2996, de 16 de agosto de 1926.
Sua esposa, por sua vez, cozinhava as comidas típicas das aldeias (pequenas
vilas) de Portugal para os patrícios que trabalhavam na Fábrica de Doces Bela
Vista, das balas Toffee, concorrente da Indústria de Balas Confiança.
Mais tarde, arrendou uma pequena chácara de Maneco Capinzeiro, na Estrada de
Santo Amaro, que na época dava acesso ao Município de Santo Amaro, que era percorrido pelo ônibus 79, pois o bonde 104, vindo de São Judas, circulava por Indianópolis, a extensão da Avenida Ibirapuera para Santo Amaro.
Essa chácara
ficava quase em frente à farmácia do Seu Barros, hoje próximo ao hospital São
Luiz, ao lado de um terreno baldio do CNI, Confederação Nacional da Indústria,
onde as peladas esportivas corriam soltas nos fins de semana, e que se estendia
até a Rua Jacques Félix.
Crédito:Osvaldo Valente
Igreja São Dimas
Do lado oposto, estava localizada a Igreja Nossa
Senhora da Graça, depois a Igreja São Dimas, que dava fundos com a casa da Dona
Joaninha, e a Escola Estadual Martim Francisco, na Rua Domingos Fernandes com
Jacques Félix (dez mil metros quadrados que o interesse do setor imobiliário
cobiça para prédios de luxo), onde parava o ônibus 80, com itinerário Vila Nova
Conceição até o "Parque" Anhangabaú.
Nesse local,
começou a se plantar rosas, dálias, cravos dobrados e algumas hortaliças,
vagens, tomates, frutas, para consumo familiar e para um pequeno comércio do
excedente.
DE CHÁCARA AO INTERESSE IMOBILIÁRIO NA VILA NOVA CONCEIÇÃO
A família,
por sua vez, tendo um filho pequeno, Ivo dos Santos, começou a crescer e o
jardineiro Manoel interessou-se por terras que estavam sendo arrendadas da
família Rocco Tomazelli, a qual possuía comércio e transporte de carnes na Rua
Afonso Braz. Na mesma rua também ficava a fábrica de massas "Pastifício
Paulista". Na esquina das ruas Jacques Félix com Baltazar da Veiga, na
esquina oposta à chácara do Piscais, estava localizada a "Padaria Mija na
Pá", uma referência da época na região; apesar do nome pitoresco, possuía
boa qualidade dos produtos oferecidos.
Estas ruas eram passagens de boiadas, que entravam na cidade de São Paulo pelo
bairro da Lapa dirigindo-se para Pinheiros, seguindo pela Iguatemi, no bairro
Itaim Bibi, atravessando a Vila Nova Conceição, em direção a atual Avenida
República do Líbano.
Há uma epopeia
que merece consideração, pois as manadas vinham do interior paulista, para
abastecimento de carne da capital. Das cidades de várias localidades seguiam os
tropeiros, geralmente com uma manada de oitocentos a mil e quinhentos animais,
controlados por, aproximadamente, quinze peões e um capataz que conhecia o
trajeto. A tropa era composta pelo ponteiro, aquele que vem à frente com o
berrante, juntamente com o cozinheiro, seguido por dois burros cargueiros que
carregavam caixotes, as "bruacas", contendo alimentos utilizados para
o preparo da comida, panelas, bules, talheres e outros apetrechos que vinham no
lombo dos animais, cobertos com uma lona, o "surrão". A cada cem
animais havia um peão alternado, um à esquerda outro à direita, e atrás da
manada vinham, geralmente, dois homens denominados "culatras", todos
bem atentos para não ficar animal perdido, como diziam: "na
arribada".
As viagens
eram demoradas de dez a quinze quilômetros ao dia, dependendo do terreno. De
tempos em tempos, trocavam-se os cavalos de montaria por outros descansados que
seguiam com a tropa. Quando aportavam em São Paulo, estavam exaustos,
necessitando de uma "aguada". Próximo ao que viria a ser o Parque do
Ibirapuera, onde boa parte da área era um grande charco e servia de pastos,
cortado pelo Córrego do Sapateiro, formava-se pequenas lagoas, onde os animais
eram introduzidos num tanque, que servia para refrescar e para higienização,
controlados pela vigilância sanitária, próximo ao Viveiro de Plantas Manequinho
Lopes.
O Matadouro
Municipal da Vila Mariana, na Vila Clementino, na atualidade a Cinemateca
Brasileira, era o fim da linha da jornada. Fazia-se parada no Largo do
Matadouro, ou Largo Senador Raul Cardoso, entregando a encomenda para abates e
atender demandas da cidade que acolhia um grande número de pessoas, vindas de
toda parte do Brasil e do mundo.
Há de se
dizer que a cidade já seguia seu desenvolvimento para estas áreas mais
próximas. Na Avenida Santo Amaro com a Rua Afonso Braz, foi implantada a
Empresa Endoquímica, logo depois a Mead Johnson Company, pioneira da produção
na nutrição infantil. Hoje, a área é ocupada pela Faculdade Metropolitana
Unidas, FMU.
O senhor
Piscais tinha o tino mercantil dos mouros e, aos poucos adaptado ao mercado,
conseguiu manter uma licença de venda sobre o nº. 58589, controlado pela
"Secretaria da Fazenda para Serviço de Ambulantes", para trabalhar em
feiras-livres. A primeira foi na esquina da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio com
Anajaz, hoje São Gabriel, próximo ao largo da Maná, na atualidade Praça Gastão
Liberal Pinto.
Na mesma praça, mais tarde, instalou-se o "Bar do Turista", que se
localizava bem abaixo do nível da rua havendo uma escadaria de acesso, e que
servia o "sortido", composto de tudo um pouco, ou "prato
feito", o PF, que insistíamos em mudar para PC ("prato cheio").
O senhor
Piscais acordava pela madrugada, como todo feirante, e seu espaço já estava
demarcado para trabalhar por "conta", como dizia. Pegava os bondes
abertos, em que levavam com mais facilidade suas mercadorias, deslocando-se com
cestos repletos de flores, ajudado pelas filhas, Odete e Elza, para outras
feiras-livres localizadas na Alameda Lorena, Rua José Maria Lisboa, Avenida
Paulista ou Avenida Doutor Arnaldo, próximo ao Cemitério do Araçá, onde as
floriculturas que ali existem hoje são remanescentes dessa época.
Além da
labuta diária das feiras-livres, que tinha ajuda familiar, cultivava as terras
de sua chácara da Rua Jacques Félix, número 42, na Vila Nova Conceição, a base
de enxada e regador, com água extraída de um poço largo, introduzindo a
"cegonha", uma espécie de gangorra, à moda árabe, onde enchia os
baldes para a rega cotidiana da plantação. Podava videiras, ensinava sem
cerimônias o "segredo" do corte, com três "olhos" do broto
à frente do galho, que na época da primavera se alastrava verdejante. Fazia os
amarrilhos em feixes de flores a serem expostos nas feiras, no dia anterior,
deixava tudo preparado em cestos de vime ou, quando eram próximas ao Itaim,
levava em um carrinho de madeira, mais pesado que a carga a transportar.
Mesmo sem
muita leitura, mas com uma experiência passada de geração à outra, o mestre em
cultivo seguia um principio básico de manejo da terra: abria uma pequena vala
circular e depositava tudo quando sobrava daquilo mesmo que cultivava (talos de
legumes, cascas de frutas, restos de folhas que misturava com a terra),
formando um húmus fértil, estrume o qual ainda era reforçado com esterco que se
recolhia em cocheiras da vizinhança, ou de cavalos que pastavam por ali comendo
o capim verdejante e abundante.
Limpar
galinheiro era labuta de criança, que raspava as travessas dos poleiros o
esterco que era recolhido para fertilizar algum pomar. Esse rejeito de estrume
de galinhas produzia húmus orgânico, que, puro, queimava a plantação,
precisando que fosse "descansada" num processo semelhante ao conhecido
atualmente como compostagem, que era tão comum aos agricultores da época, que
desconheciam os agrotóxicos atuais. De tempos em tempos remexia-se tudo com a
forquilha, uma espécie de garfo para facilitar a fermentação deste composto.
Outra tarefa era separar as galinhas botadeiras. Às vezes, uma chocava no mato,
e era bonito ver a mãe coruja, digo galinha, com toda ninhada marchando de
volta pra casa. Esses pequenos afazeres serviam ao adágio que anunciava: quem
perde o serviço do "meninito" é "tolito", e que, em outras
palavras, queria dizer que quem não orientava as crianças em pequenos afazeres,
era um bobo.
Havia na
Avenida Iguatemi a chácara de seu cunhado Joaquim Monteiro Amaro, que tinha
também larga experiência agrícola. Neste local, a terra tinha uma textura preta
que parecia de melhor qualidade de plantio, talvez pela proximidade com o Rio
Pinheiros, que havia sido retificado, havendo inclusive castanheiras e
jabuticabeiras e plantas ornamentais, mas o que rendia alguns
"trocados" mesmo era fazer mudas de hibiscos para construir cercas
vivas.
As plantas
frutíferas eram feitas enxertias, geralmente em pé de limão rosa, resistente a
pragas, e, às vezes, vinham buscá-los para mudar alguma árvore de lugar - uma
ciência que só os jardineiros tarimbados possuem - e iam fazendo um círculo
profundo em volta, dizendo "cuidado com o espigão", que era a raiz
central existente em toda árvore, que não podia ser afetada, senão a árvore não
vingava.
Os filhos de
seu Joaquim, Fausto, Jaime, Paulo, Alcides, apelidado de Nego, muito
contribuíram para o esporte do Itaim, no antigo Canto do Rio, Marítimo, na
atualidade o Parque do Povo, na Cidade Jardim.
O São Paulo Futebol Clube fez de tudo para levar o Fausto para o
profissionalismo, mas Seu Joaquim não consentiu, pois, filho seu, tinha que
trabalhar e ter profissão. Assim, tornou-se torneiro mecânico e o esporte
perdeu um atleta, coisas dos tempos!
Mais tarde,
o progresso expandia por São Paulo, que crescia e precisava implantar um
transporte que levasse maior número de operários. No governo paulista do
professor Jânio da Silva Quadros, surgia o papa-fila, da Fábrica Nacional de
Motores, FNM, tentativa de constituir-se um veículo feito integralmente no
Brasil. Um ônibus articulado, "moderno", onde se separava o motorista,
que ficava na boleia (cabine do motorista) do cavalo (o que puxa a carga), e os
passageiros atrás deste, havendo uma porta de entrada nos fundos e outra no
centro maior para facilitar o "descarregamento".
As Padarias Charlú e Nice, situadas na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, que
mantinham cocheiras na Vila Nova Conceição, perderam seus espaços para vendas
de automóveis da A.P. Gonçalves, do Seu Ramos. Eram novos tempos de governos
democráticos, iniciados por Juscelino Kubitschek e João Goulart, empossados em
31 de janeiro de 1956, época dos anos dourados.
O prédio do
seu João Ribeiro, onde estava a sede do Clube de Futebol General Couto de
Magalhães, que fervilhava de gente nos bailes da Rua Santa Justina com a
Avenida Santo Amaro, em memoráveis apresentações, das ofertas de cravos às
damas para conceder a dança, perdeu seu brilho. Os cinemas Excelsior e Radar,
da Avenida Santo Amaro, O Star/Lumière, da Rua Joaquim Floriano, eram as
sensações, pois estavam no auge os astros das telas.
Os
chacareiros do Itaim Bibi e Vila Nova Conceição e que mantinham também pequeno
rebanho leiteiro não podiam mais manter os negócios. Muitos antigos moradores
se deslocaram para o Brooklin, Chácara Santo Antônio e Santo Amaro.
Esses dois
pioneiros da jardinagem não poderiam permanecer onde começaram e foram para
outra periferia mais longínqua, pegando o bonde 101; chegaram a Santo Amaro.
Mudaram, conforme suas posses, para o bairro Jardim São Luiz, e o "Senhor
Manoel, o Piscais" e seu "cunhado Joaquim", tentaram manter o
cultivo da terra. Ainda conseguiram manter sua horta familiar de verduras e
legumes, alguns pêssegos e mexericas, mas a cidade não abrigava mais as
condições iniciais de seu desenvolvimento. São Paulo transformava-se: de
agrícola e pastoril, tornava-se industrial, em nome do progresso.
Este
depoimento foi concedido nos meses de maio a julho de 2008, por Odete dos
Santos Amaro e Elza dos Santos Fatorelli, filhas de Manoel dos Santos, o Salas
ou Piscais, de nosso relato, e sobrinhas de Joaquim Monteiro Amaro, em condição
de oralidade dos fatos e fotos. Quanto ao relato sobre as boiadas, agradecemos
ao antigo tropeiro Cyro Mascarenhas de Campos, que muito contribuiu para o
complemento desta história.
O exposto estará sujeito a quaisquer sugestões e críticas, passíveis e
possíveis, para ser mais próximo da verdade histórica. Quase esquecia: o
"gajo" era meu avô!
Publicado
em 01-10-2008 com o título de “Matadouro da Vila Clementino e as feiras do
Itaim”
Testemunho Publicado em 30/09/2008 em saopaulominhacidade por Mário Lopomo