sábado, 13 de fevereiro de 2010

OS TERRATENENTES DO BRASIL (15): A Genética Erótica de Espanha e de Portugal na Conquista da América

Fetichismo da Carne das Cunhãs e Concubinas

ESPANHA[1]
A situação contemporânea interpessoal perpetua as injustiças da antiga relação homem e mulher que tem existido por milênios e praticado por europeus nas conquistas. Se é verdade que, como Freud sugeriu que, em nossa sociedade a conduta da libido é orientada pela natureza comumente masculina (Mannlicher Natur), não se demonstrou na América Latina que o conquistador era um homem de respeitabilidade, enquanto a mulher escravizada era produto desta alienação insaciável do colonizador.
Dom Juan Ramírez de Guatemala, escreveu em 10 de março de 1603, que nunca as piores formas de violência, antes ouvido em outras nações, estavam sendo praticados contra as mulheres indígenas, e elas foram obrigadas, contra a sua vontade, por ordem das autoridades para servirem nas casas dos “encomenderos”[2], em suas plantações e em suas atividades, foram mantidos quase encarceradas como concubinas pelos proprietários, juntamente com os mestiços, mulatos e negros, aqueles que lhes prestavam serviços. O conquistador que coabitava ilegalmente com uma mulher indígena foi o pai do mestiço enquanto que a mulher indígena foi a mãe.

O conquistador, na pessoa do “encomendero colonial”, era um burocrata, depois oligarca, um crioulo[3] e finalmente, um burguês, subordinando sexualmente indígenas oprimidas e alienadas, a mestiça, a mulher pobre da sociedade[4]. O homem oligarca nacional continuava a exercer a práxis dominante de seduzi-la, aproveitando-se de meninas e dos pobres trabalhadores na periferia das grandes cidades como algo de uso público, enquanto ao mesmo tempo, exigia que a dama aristocrática permanecesse pura e casta, hipocrisia velada de um puritanismo falso do sistema colonial.

A prática do “eu conquistei” do opressor, que se intitulava “ser supremo” da Colônia com direitos da preponderância masculina pelo controle social e da plena dominação política e econômica do local.

PORTUGAL
Além da mobilidade, o português tinha a facilidade de adaptar-se ao misturar-se com outras raças, por questões dos domínios anteriores de “bárbaros” deslocados da península como celtas, godos, suevos e outros, diferente do modelo da Espanha quanto da Reconquista aos árabes.
O Brasil era imenso e povoar o território era o grande desafio. A Casa-Grande, a casa do senhorio das grandes propriedades rurais do Brasil colonial, abrigava uma rotina dirigida pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo.
“Os portugueses, menos ortodoxos que os espanhóis e menos restritos que os ingleses quanto a cor e moral cristã, vieram defrontar-se na América com uma das populações mais rasteiras do continente… Uma cultura verde e incipiente, sem o desenvolvimento nem a resistência das grandes semi civilizações americanas, como os Incas e os Astecas.” (Freire, Casa-Grande e Senzala)

No Brasil, as relações entre europeus e as raças originais e as transplantadas foram desde século XVI condicionadas, a produção da monocultura latifundiária. O açúcar esterilizou a terra, numa grande extensão em volta aos engenhos para os esforços da policultura e da pecuária que exigiu uma enorme massa de escravos. A criação de gado, com possibilidade de vida através da pecuária, deslocou-se para os sertões. Na zona agrária desenvolveu-se uma sociedade semifeudal, com a monocultura absorvente, com uma minoria de brancos e de domínio patriarcal e poligâmico do alto das Casas-Grandes, com uma vassalagem de maioria formada de escravos, a serviço de suas necessidades. Os europeus e seus descendentes, dominadores absolutos das populações indígenas e dos negros da África, coabitaram com indígenas e africanas quanto às relações genéticas e sociais, criando um modelo de convivência entre senhores e escravos, pela escassez de mulheres brancas.
As relações de senhores abusadores e sádicos com suas escravas constituíram famílias dentro dessas circunstâncias e sobre essa base de “consentimento”, onde a distância social aproximou a Casa-Grande a mata tropical e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou foi unir extremos antagônicos de senhores e escravos promovendo aquilo que formou a sociedade pelos efeitos sociais da miscigenação. A indígena se torna cunhã[5] e negra concubina e, por vezes, até esposas legítimas dos senhores brancos na formação de mestiços.
A reação dos índios ao domínio do colonizador tinha uma inércia de contemplação, ou talvez o espanto ao poder bélico desconhecido pelo nativo. O português usava o homem para o trabalho e a guerra, principalmente na conquista de novos territórios, e a mulher para a geração e formação da família. O que há de acentuar-se é o papel da mulher indígena na formação brasileira, não só através do relacionamento sexual mencionado, mas através do papel social que ela começou a desempenhar, tornando-se figura importante na formação do povo brasileiro. Da “cunhã” é que nos veio o melhor da cultura indígena, a higiene do corpo, manejo de culinária local, tornaram-se cozinheiras preparando o milho, o caju, o mingau, o biju ou tapioca, atividades aprendidas nas aldeias, que lhe dava estabilidade nessa sua nova condição. A poligamia e a vida sexual das indígenas iam ao encontro da voracidade do português, imagem do inconsciente coletivo deixada pela invasão moura na Península Ibérica.
O brasileiro atual, amante do banho, que mantém o asseio do cabelo brilhante de loção, ou ainda a rede do embalar o sono, reflete a influência indígena. A união do português com a índigena gerou os mamelucos[6], o caboclo mestiço de branco e indígena, que atuaram com os bandeirantes na conquista dos sertões do Brasil e, junto com os nativos, formavam a “muralha movediça” da fronteira colonial. Ambos excediam o português em mobilidade na ação guerreira, defendendo o patrimônio do senhor de engenho contra ataques estrangeiros. Os pés de nômades não se fixavam na plantação da cana-de-açúcar, nunca firmaram as mãos na enxada de uso constante. Para as tribos íncolas mais primitivas, a união do macho com a fêmea tinha época; o costume de oferecer mulheres aos hóspedes era prática de hospitalidade, próximo do ritual.

A mulher, africana escrava, circulava entre a senzala e o interior da Casa-Grande como domésticas ou concubinas do senhor onde as relações de poder, a vida doméstica e sexual, fundiram no cadinho a amálgama da base do modelo de vida no século XVI da sociedade brasileira. Sob o teto patriarcal viviam os filhos, legítimos e bastardos, o capelão e as mulheres, misturados aos negócios do engenho de cana e a religiosidade que fundamentariam a colonização portuguesa onde a Casa-Grande era uma característica da cultura escravocrata e latifundiária tipicamente do Brasil.
A força motora da economia estava embasada na produção de açúcar, um sistema econômico que os portugueses aprenderam fundindo-se com os mouros durante a ocupação da Península Ibérica. Os mouros, de grande tradição agrícola, introduziram a arte da enxertia em laranjeiras, limoeiros e outros cítricos além de implantarem a tecnologia do engenho mouro no fabrico do açúcar em Portugal.

Com a introdução da mão-de-obra escrava importada da África, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam substituir as mulheres indígenas pelas negras na cozinha, como na cama do senhor. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da Casa-Grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas[7] e domésticas sofrendo da mulher branca os castigos mais variados. A escrava adoçava a boca do senhor e recebia chicotadas a mando da senhora, em evidente relação de contradições, conflitos e potencialidades.
As sinhazinhas cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos, ou se tornavam matronas aos dezoito anos. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas, onde era raro encontrar uma que soubesse ler e escrever, viviam reclusas[8], sendo os acontecimentos de fora do engenho transmitidos da boca das mucamas, e somente na igreja que a sinhá tinha oportunidade de “fazer-se e de mostrar-se bela”. Seu espaço reservava-se ao lar e à Igreja.
Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo alguém ligado por parentesco para perpetuar a propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos e aos filhos bastardos, gerados na Casa-Grande e paridos na senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer lhes agraciava com a alforria.
As mulheres eram vistas como procriadoras, sobretudo no primeiro século de colonização, destaque-se como período de verdadeira "intoxicação sexual" (Freyre, p.93).

“Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem.” Trecho de Casa-Grande e Senzala.

MESTIÇAGEM
O Mestiço: Cândido Portinari

A mestiçagem deve ser vista como um fato histórico resultado das condições concretas do convívio humano através dos séculos em nosso país, levando em conta as relações sociais e raciais; a escassez de mulheres brancas; finalmente, o domínio patriarcal e a subordinação das mulheres.
Quem migrava de Portugal para a colônia eram principalmente homens, que vinham sem suas famílias. Da África, a mesma coisa: o principal contingente de africanos exportados para o trabalho forçado na colônia era formado por homens; segundo Darcy Ribeiro, a relação entre homens e mulheres no tráfico escravo teria sido de 4 para 1. Apenas no contingente populacional indígena, originário da terra, existia uma situação de equilíbrio na distribuição dos sexos e que levou, desde o início da colonização até meados do século XVII, ao cruzamento generalizado entre colonizadores e mulheres indígenas.
A falta de homens em quantidade suficiente para ocupar e defender o território incentivou para a promoção de mestiços a ocupações dentro do sistema colonial e escravista já que Portugal tinha uma população exígua para ocupar a imensa extensão de seu império que incluía, além do Brasil, territórios na África e na Ásia em 1500, a Metrópole tinha cerca de 1,5 milhões habitantes, chegando a 2,4 milhões em 1732. E o Brasil, em 1600, teria cerca de 100 mil habitantes, dos quais aproximadamente 30 mil seriam de origem européia; em 1700, alcançaria 300000 e o número daqueles de origem européia dificilmente chegaria a 100 mil.
A manifestação desse atraso, no Brasil colonial, foi o domínio do patriarca, senhor absoluto de seus domínios e da vida e morte de todos os seus dependentes. A discriminação social e política dos mestiços, semelhante à dos negros livres, ilustra o desprezo senhorial e escravista em relação a essas relações que, mesmo generalizadas, ocorriam à margem da formalidade do matrimônio, mesmo porque a lei proibia casamentos inter étnicos e exigia pureza de sangue para cargos no aparelho de Estado. O processo histórico revela a forte hierarquização e violência, entre o senhor branco e a negra, mulata, índia ou outra mulher subalterna, que apregoa um suposto caráter de liberdade dessas relações[9].
Embora a miscigenação não seja como querem os conservadores, prova de democracia racial, seu resultado concreto e inovador foi a formação deste povo novo, o brasileiro, que tem enormes problemas a resolver na busca de transformação de sua condição subordinada ao paternalismo do Estado. Só uma visão critica da história pode cobrar do passado a solução de problemas que, embora herdados das gerações anteriores, exigem soluções contemporâneas misturadas às necessidades do Brasil e da liberdade das etnias.

BIBLIOGRAFIA

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Notas:

[1] 1Dussel, Enrique. A história da Igreja na América Latina, in Dominação Capítulo I-Libertação: Discussões de Diferente espécie Teológica.

[2] Encomienda era um sistema de trabalho que foi empregado pela coroa espanhola durante a colonização da América. Na encomienda, a coroa concedia a uma pessoa intitulada encomendero um número especificado de nativos para serem instruídos na língua espanhola e na fé católica. C Omo compensação podiam exigir o tributo dos nativos com trabalho, ou ouro ou produtos, como no milho, o trigo ou qualquer criação domesticada. O encomiendero fazia parte das levas de conquistadores e soldados, ou alguma hierarquia concedida pelo rei e mercês em terras para serem administradas em nome da Coroa na América.

[3] "Limpieza de sangre" era uma concepção jurídica derivada do espanhol na Reconquista da Espanha aos árabes e que posteriormente, foi usado nas colônias espanholas nas Américas. O conceito foi utilizado para distinguir “ancestral puro" sem misturadas muçulmanas ou dos sephardim, judeus ibéricos. O conceito foi adaptado em um contexto de hierarquia racial baseada na "pureza" da raça em um ambiente como a América amplamente repovoado por pessoas de raça mista, como resultado da chegada dos europeus e a miscigenação com os autóctones bem como africanos, ambos escravizados. Poderia ser considerado "puro" uma pessoa de ascendência espanhola sem mistura, mesmo que nascido nas Américas de pais comprovadamente espanhóis, ou também pais “Crioulos”, nascidos já nas Américas, ou um espanhol e um crioulo, comprovadamente em registros de linhagem. (probanzas de sangre).

[4] Bartolina Sisa nasceu em 1753 na comunidade de Sullkawi del Ayllu, e conviveu com a repressão do governo espanhol, que há dois séculos havia invadido o continente americano. Seu pai, José Sisa, e sua mãe, Josefa Vargas, eram comerciantes de tecido e coca e vendendo seus produtos em vida itinerante, eram acompanhados por Bartolina, presenciando a pobreza e humilhação sofridas pelo povo no árido altiplano até os vales de La Paz, no Peru, despertando nela a necessidade de defender a emancipação das comunidades indígenas. Casou-se com o aimará Tupac Katari, acompanhando os revolucionários indígenas peruanos como Tupac Amaru, de origem quéchua, e sua companheira Micaela Bastidas, discutindo estratégias de luta para a libertação e restabelecimento da Nação Andina. Planejaram deste modo uma guerra contra os espanhóis, recrutando mais de 150 mil indígenas entre os territórios do Peru e Bolívia. Em 13 de março de 1871, iniciaram o cerco a La Paz, cidade fundada em 20 de outubro de 1548, durou 109 dias, onde muitos espanhóis morreram principalmente de fome. Bartolina Sisa foi surpreendida no caminho por seus acompanhantes, que a entregaram aos espanhóis como prisioneira de guerra por recompensa aos rebeldes que entregassem seus comandantes. Tupac Katari também foi traído e assassinado em 14 de novembro de 1781. Em 5 de setembro de 1782, Bartolina e Gregoria Apaza, que estavam na prisão, foram levadas nuas pelas ruas de La Paz arrastadas por cavalos, suas línguas foram arrancadas para calar os gritos e partes de seus corpos foram expostos pela praça central para exibição pública. Assim em homenagem a todas as mulheres Indígenas que combateram a dominação espanhola, celebra-se em 5 de setembro o Dia Internacional da Mulher Indígena na América Latina.

[5] Mito do cunhadismo: entendia que as sociedades indígenas entregavam suas mulheres como concubinas dos senhores coloniais que constituíam seu domínio sobre as sociedades indígenas e acabavam por conquistá-las pela força e controle, onde a elite adquiria prestígio social e militar.

[6] Os mamelucos, termo de origem árabe, eram escravos que geralmente serviam a seus amos como pajens ou criados domésticos.

[7] Por concubinato entende-se todo o amplo conjunto de relações conjugais estabelecidas à margem do sacramento do matrimônio. No período colonial era também chamado de mancebia ou amancebamento. (COMBORÇARIA OU CONCUBINATO) O tratamento dado ao tema freqüentemente não tem sublinhado as diferenças de inserção de homem e mulher nas teias inquisitoriais da igreja. Em decorrência, vários indícios podem ser subutilizados ou silenciados. Buscamos apenas diferenciar os componentes dessas relações em termos de etnia:
[...] “é preciso não tratar o conjunto dos concubinatos como um todo homogêneo para o qual haveria um padrão de comportamento único. A natureza da sociedade colonial, marcada peias diferenciações sociais impostas pela etnia, exige a investigação pormenorizada dos ainda não amplamente pesquisados padrão indígena e africano de comportamento”.

Concubinato especifica união não formalizada pelo casamento civil. Acontece quando uma mulher passa a viver com um homem, em caráter duradouro, como se fossem marido e mulher, presumivelmente sob o mesmo teto. Na jurisprudência brasileira se encontra o conceito de Concubina e Amante como sinônimos. Amante é a mulher que se encontra com um homem apenas com finalidade sexual, podendo-se afirmar que toda Concubina (Companheira /Convivente) é amante, mas nem toda amante é Concubina.

[8] Na clausura, as mulheres ficavam rodeadas de índias, sendo essas últimas representadas como amantes dos esposos e mães dos bastardos mamelucos. Essas cunhãs eram responsáveis por amassar “o barro, misturando-lhe um pouco de cinza; elas que executavam os vasos de serventia doméstica, os camocins funerários, as iguaças imensas de cauim; elas que ornavam, com ingenuidade e graça, de linhas policrônicas ou esguias espirais de argila". Ao lado da família legitima, estavam as uniões entre os colonizadores e as representações das índias concubinas prisioneiras de guerra, que faziam parte dos despojos dos vencedores. Machado, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Editora Martins, 1965. p.77

[9] “Os brancos diziam que em nenhum país do mundo essa nefanda instituição foi tão doce como no Brasil. Agora não me passa pela cabeça - não deve passar pela cabeça de ninguém - que essa nefanda instituição, como os próprios brancos chamavam a escravidão, que ela pudesse ser doce em algum lugar. Ela só pode ser doce da perspectiva de quem estivesse na casa-grande e não na perspectiva de quem estivesse na senzala.”Florestan Fernandes, cientista social.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

OS TERRATENENTES DO BRASIL (14): Os Fidalgos-Mercadores e o Negócio da Carne Humana

Os Homens de Negócios de Grosso Trato

Os homens de negócios[1], conhecidos como comerciantes que negociavam a grosso, por atacado de escravos em grande quantidade, diferenciando dos demais comerciantes, que se ocupavam das produções da sua pátria, a fim de trocá-las por outras mercadorias necessárias, ou dinheiro este comércio feito por ou com outras partes do mundo. Foram os comerciantes de grosso trato, que negociavam principalmente carne humana, que asseguraram a sobrevivência e o luxo da corte.

Tendo como principal atividade o comércio de longa distância, os homens de negócios tiveram uma grande mobilidade na sociedade imperial portuguesa. Seja em Lisboa, seja em outras regiões e centros mercantis do Império, como na Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Essa mobilidade dava-lhes prestígio econômico e político e até prestígio de Ordem Militar do Império Português, recebendo mercês e sesmarias nas colônias.

Devido ao enobrecimento, recebido pela acumulação mercantil convertida em status, fez com que foram denominados fidalgos-mercadores, negociantes, que acumularam capital no comércio colonial, recebendo o titulo de fidalguia tanto em Portugal quanto na Inglaterra, os primeiros que fizeram riqueza com o comércio de escravos, investindo em plantações nas Caraíbas e no Sul dos Estados Unidos, em navios cargueiros, no comércio de bens alimentícios e que depois financiou a revolução industrial. O conceito de fidalgo-mercador era apropriado ao negociante e contratador português Francisco Pinheiro natural de uma região de Lisboa, Cavalheiro da Ordem de Cristo, membro da Mesa do Bem Comum do Espírito Santo dos Homens de Negócios e com negócios pela Europa e Império Português.

A descoberta de ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII, promoveu uma intensa procura pelo trabalho escravo nas minas[2], provocando uma corrida em direção à África na busca de escravos, atraindo também ingleses e holandeses e acirrando rivalidades já desgastadas entre as praças mercantis de Lisboa, Salvador e Rio de Janeiro; pelo exclusivo do comércio dos escravos da Costa da Mina, onde Francisco Pinheiro passou a atuar neste negócio altamente lucrativo no denominado negócio da “carne humana” [3].
Numa carta enviada ao rei de Portugal em 20 de junho de 1703, o governador da Bahia, Dom Rodrigo da Costa solicitava providências quanto à participação dos negociantes do Rio de Janeiro no referido comércio, pois passaram a concorrer com os baianos no abastecimento de mão de obra para as Minas Gerais. Em 27 de setembro de 1703, o rei de Portugal fazia conhecer ao governador da Bahia a “provisão régia para comércio da Costa da Mina e na Guiné”:
“Eu, El-Rey, fui servido mandar prohibir absolutamente, que não vão embarcações nem do Rio de Janeiro, nem dos portos das Capitanias do sul a costa da Mina..., impondo aos transgressores desta ley a pena de se lhe confiscarem assy os navios em que navegarem, como as fazendas que se acharem, e de serem degradados por tempo de seis annos para S. Tomé”.
Com a invasão francesa no Rio de Janeiro em 1711, dificultaram os negócios de escravos, relacionadas com os altos custos da organização do comércio na embarcação e tripulação e alto custo de mercadorias onde Guilherme Rubim, agente de Francisco Pinheiro na Bahia, em 15 de outubro de 1712,, relata as dificuldades de escoar produtos para o Rio de Janeiro:
“pella cauza dos framcesses destruhirem o Rio de Janeiro e se acha a terra falta de vários gêneros, desta cidade me dissem forão tantos, que se acha abundante delles primcipalmente de gêneros de lam e pannos de linho e alguns mantimentos de sorte que esta cidade ficou exsausta destes últimos (...)”.

Preocupado com o que ocorreu em 1710 e 1711, Francisco Pinheiro enviou seu caixeiro de Lisboa, João Diniz de Azevedo e o capitão José Vieira Marques para uma “carregação” de escravos da Costa da Mina em 1714. Francisco Pinheiro recebeu informações da chegada da “carregação” de “negros da Mina”, havendo preferência pelo escravo “homem adulto” pela capacidade física para o trabalho “plenamente produtivo e rentável”, que eram enviados ao Rio de Janeiro e para Minas Gerais.

Além das dificuldades de organizar sociedades para o comércio de escravos, dois acontecimentos dificultaram os negócios de Francisco Pinheiro na Costa da Mina:
O primeiro foi à construção do forte em São João Batista de Ajuda na Costa da Mina, em 1721, financiado por negociantes baianos, e sob iniciativa de Vasco Fernandez César de Meneses, 39º governador e capitão geral da Bahia e 4º vice rei do Brasil.
O segundo foi o início da expansão do Reino de Daomé, que intensificou as disputas entre os reinos africanos pelo tráfico na costa da Mina, aumentando o risco do comércio de escravos na região.

A história registra ainda que João de Oliveira, iorubano escravizado, nascido por volta de 1700, foi levado ainda jovem para Recife, sendo convertido à fé cristã. Pierre Verger escreveu sobre João de Oliveira em capítulo de seu livro “Os Libertos”, afirma que o escravo, que gozava de toda a confiança de seu dono, foi enviado de volta à África, onde contribuiu para revolucionar o tráfico negreiro na Costa da Mina.
João de Oliveira não somente comprou sua liberdade com os escravos que enviava ao Brasil, como continuou a mandá-los mesmo após a morte de seu dono, como forma de ajudar à viúva, “que havia caído em estado de necessidade”. Desempenhou papel importante na revitalização do tráfico negreiro entre a Costa da Mina e o nordeste brasileiro, contrapondo-se à hegemonia dos reis daomeanos, que, desde 1721, data da conquista do porto de Uidá pelo rei Agadja, dominavam a região.

Segundo Verger, “Oliveira estabeleceu por sua conta, na parte oriental dessa mesma Costa da Mina, o Porto-Novo, controlado desde Oyo, no interior, pelo poderoso rei dos Iorubás, e o porto de Onin, em Lagos, que dependia do rei de Benin”
Viveu por 37 anos na Costa da Mina, sendo que João de Oliveira “teria quase assumido o papel de primeiro embaixador de Portugal na Costa da África”, conforme Verger, regressando ao Brasil em 1770, em companhia de quatro embaixadores do rei de Onin. Chegando a Salvador, foi vítima de medidas tomadas pelo governador da Bahia, José da Cunha Grã Ataíde e Mello, o 3º Conde de Povolide, que visava punir donos e capitães de navios atuantes na Costa da Mina. Aprisionado por ordem do provedor da alfândega, permaneceu encarcerado por trinta dias.
O comércio de escravos aos poucos declinava por guerras na costa da África e as disputas entre negociantes das praças de Salvador e do Rio de Janeiro, como também de ingleses e holandeses, esse último controlando o comércio de escravos na Costa da Mina e Guiné. Ninguém se expunha ao risco da exploração do comércio marítimo e a falta de sócios para a organização do navio obrigava o fechamento de sociedades no Rio de Janeiro.

Por outro lado na costa oriental da África o desenvolvimento de um grupo de mercadores e armadores estabeleciam em Moçambique profundas alterações políticas, sociais e econômicas nos domínios portugueses desencadeadas pelo processo de autonomia em relação ao Estado da Índia, iniciado em 1752.

Também em algumas situações, os negociantes que seguiam do Brasil para Moçambique foram autorizados a envolverem-se no comércio de cabotagem. Em 1761, com José Francisco da Fonseca decidiu fixar-se em Moçambique, envolvendo-se no comércio interno, fazendo fortuna no transporte e no tráfico de escravos, víveres e marfim construindo um patrimônio composto de ouro e prata, escravos, tecidos.
Em 1763 ou 1764, António Lopes da Costa e João Antunes de Araújo e Lima, influentes homens de negócio da praça carioca, decidiram estabelecer-se na África e aí constituir uma sociedade para os tratos que desenvolviam, não só em diversos portos da costa brasileira, mas, também, em Moçambique e na Índia.

Pensada para o resgate de escravos de longa distância, esta sociedade que ficou conhecida pelo nome de Casa do Rio de Janeiro, viu-se obrigada igualmente a envolver-se no comércio interno de Moçambique, dado que as mercadorias que enviava para o «tráfico de almas», não conseguiam concorrer em qualidade e preços, com os tecidos indianos e com as «armas, a pólvora, os panos de cafre de origem Malabar.

No final do século XVIII, essa elite constituía já uma pequena oligarquia financeira disposta a monopolizar o comércio da costa e a investir no alargamento do espaço de atuação.
O incremento do tráfico de escravos e o afluxo de milhares de patacas[4] ao mercado moçambicano proporcionaram enormes vantagens aos detentores de cargos públicos, na medida em que enquanto anteriormente o marfim, os panos e os escravos, necessitavam ser tributados, o grande fluxo de moeda permitia-lhes arrecadar subornos de forma discreta e difícil de controlar que chegavam às mãos do governador e da administração com capacidade para influenciarem o desenvolvimento do tráfico.
O aumento do número de mercadores portugueses e o primeiro esboço de um corpo mercantil só se tornariam visível a partir do final da década de 1770 e início da década de 1780, com a expansão do tráfico de escravos desenvolvido pelos franceses no arquipélago de Mascarenhas, base de reabastecimento de navios em trânsito para a Índia pela Companhia Francesa das Índias Orientais, no oceano Índico ocidental na rota do cabo da Boa Esperança e pelos brasileiros na costa oriental africana, especialmente ao norte de Moçambique, no Arquipélago Querimbas e em Quelimane, cidade da província da Zambézia.

Entre 1781 e 1790, tinham sido exportados em navios portugueses aproximadamente vinte e quatro mil escravos, mesma quantidade dos anos de 1787 a 1790, em navios estrangeiros, média de seis mil por ano. Cada navio transportava em média cerca de duzentos escravos, os armadores portugueses preparavam os seus navios para efetuarem a média de quinze viagens por ano a mesma quantidade seria aceita para navios estrangeiros, totalizando a demanda acima, ou seja 6000 escravos por ano, transportados a 200 “peças”, conforme dito à época, por cada navio, totalizando o total de 30 viagens entre 1787 e 1790.

Outro representante de homens de negócios de “carne humana” foi o mestiço Francisco Félix de Souza[5], nascido em 4 de outubro de 1754, na Bahia. Possuindo habilidade comercial, atravessou o Atlântico e chegou a Daomé, Uidá, na África Ocidental, para transformar-se no maior traficante de escravos do século XIX, estabelecendo-se em Benin em 1788. Após alguns desacertos comerciais, mudou-se, primeiro, para Popô Pequen[6], empregando-se depois na fortaleza portuguesa de São João Batista de Ajudá, em 1803, como escrivão e contador e mesmo sem a autorização formal dos portugueses, passou a atuar como intermediário comercial naquele que era o mais importante centro exportador de escravos do Golfo de Benim. Depois, o “dada”, rei de Daomé, denominou-lhe “chachá”, que poderia significar chefe dos brancos e vice-rei de Ajudá.[7] Acumulou patrimônio elevado proveniente de navios para transportar escravos, esposas, currais de gado miúdo, chiqueiros, capoeiras e tulhas de inhame, mandioca, milho e plantações de palma de dendê.

As pressões inglesas para o fim do tráfico produziu diminuição da atividade arruinando homens de negócios porque não sabiam fazer outra coisa que não fosse traficar “carne humana”[8].

Referências:

SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil (dores de crescimento de uma sociedade colonial).Tradução de Nair de Lacerda. 2ª ed.revista. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1969.

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do Tráfico deEscravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. Tradução de Tasso Gadzanis. 4ª ed. ver. Salvador: Corrupio, 2002.
VERGER, Pierre. Os libertos, sete caminhos na liberdade de escravos da Bahia no século XIX. Salvador. Fundação Cultural, Estado da Bahia, 1992.

CHAVES, Claudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas Setecentistas. São Paulo:Annablume, 1999.

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711-1765). São Paulo, 2007. Tese (Doutorado em História Social) - FFLCH-USP

FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e o comércio nas Minas Setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999.

FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza Ou Chachá. In Mercador de Escravos. Nova Fronteira, 2004.

SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada E A Lança: A África Antes dos Portugueses. São Paulo. Editora Nova Fronteira, 1992.

SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo, A África e a Escravidão, de 1500 a 1700. São Paulo. Editora Nova Fronteira, 1992.

Notas:


[1] Max Weber denominou esses negociantes de comerciantes atacadistas e, Fernand Braudel denominou-os de negociantes-capitalistas. A historiografia tem caracterizado os agentes mercantis, quanto à dimensão das transações, em comerciantes de grosso trato e a retalho, ou varejo, quanto à mobilidade, em comerciantes fixos e volantes, e quanto à permanência nos negócios, em comerciantes eventuais, ou circunstanciais e permanentes. Apesar de podermos identificar essas tendências gerais, segundo Júnia Furtado, "eram quase imperceptíveis as linhas que separavam o comércio volante do fixo, os grandes negociantes dos pequenos, os comerciantes eventuais dos permanentes." No caso de Minas, a autora afirma que "as características que marcaram os comerciantes mineiros foram a heterogeneidade, a instabilidade e a fluidez entre os diversos tipos de atividades a que se dedicavam".

[2] Os comboieiros, a pretexto de venderem escravos, facilmente obtinham licença para entrarem nas terras demarcadas. Não se refletiu que a homens já habituados ao abominável comércio da carne humana não repugnaria qualquer outra especulação ilícita e proibida. Foram eles os maiores contrabandistas dos anos 1743 e 1744. Vendiam na demarcação os escravos que traziam, e o produto era empregado em diamantes que compravam; e tão certos estavam deste negócio, que de antemão participavam sua vinda para seus fregueses, para que eles se preparassem. São os comboieiros aqueles que aos portos da marinha costumam ir buscar escravos para os vender nas Minas, aos mineiros, roceiros e mais habitantes delas. Custam os melhores escravos nos portos de 100$000 até 120$000 rs., fazem de despesas de direitos e sustento na viagem 20$000 rs. O modo porque os vendem é fiado por dois anos de 180 até 200 oitavas de ouro em pó (de 216$000 a 240$000 rs.), ou em dois pagamentos iguais de ano a ano. Não tomam outra informação para venderem mais do que, se o comprador que quer comprar o escravo, tem ao menos outro pago; e sendo dois melhor...

[3] Para a classificação de negros vindos da África usou-se os termos “gentio” assim como “nação”. Gentio é uma alusão à palavra gente, indicando uma lei natural designando dos povos onde era transmitida a catequese missionária, usado ate o século XVIII. O termo nação eram povos ligados a determinada região, com língua, leis e nação específica. O termo foi utilizado do século xv até o XIX. As identificações dos gentios eram da guiné, angola e mina, as duas últimas faziam parte de uma grande variedade de grupos étnicos.

[4] A permanente escassez de moeda cunhada, nos séculos XVI e XVII, no Brasil, obrigou a Coroa Portuguesa a criar tais oficinas, de caráter temporário, em várias capitanias. O objetivo, geralmente, era o de aplicar "recunhos" em moedas espanholas. Mas também foi comum a aplicação de "escudetes", que aumentavam o valor da moeda e de "carimbos", que reduziam o valor delas. Mandada estabelecer por alvará de 26 de fevereiro de 1643, para carimbar patacas e meias patacas espanholas com os valores de $480 (quatrocentos e oitenta réis) e $240 (duzentos e quarenta réis). Tais moedas deveriam ser levadas pelos seus possuidores à oficina no prazo de 4 meses. OLIVEIRA, Salles, Moedas do Brasil e GONÇALVES, Cléber Baptista. Casa da Moeda do Brasil. (www.receita.fazenda.gov.br/memoria/administracao/reparticoes/colonia/oficinas)

[5] Relato Alberto da Costa e Silva, diplomata que testemunhou em 1960 a independência da Nigéria e conheceu Etiópia, Gana, Togo, Camarões, Angola, Costa do Marfim, Zaire, Gabão e outras nações africanas, relatando ainda a visita que fez em outubro de 1995 a Daomé para participar da festa do sucessor ao título de Chachá VIII, Honoré Feliciano Julião de Souza.
[6] Relatos dizem que entrou no negócio de tráfico de escravos levado pelo seu sogro Comalangã, régulo da ilha de Glidji, na localidade de Popó, e pai de sua primeira esposa, Jijibu ou Djidgiabu.

[7] Seria, segundo versões, corruptela de “já, já!”, ou seja, “agora mesmo”, imperativo de que abusaria no trato com os subordinados, e não um título.

[8] Brasil Amplia Luta Por Recursos Africanos: Diário Britânico Financial Times 9 de Fevereiro de 2010: O Brasil reedita com operações da “Vale” (antiga mineradora Vale do Rio Doce) em Moçambique , seu interesse pela África na corrida internacional pelos recursos africanos.O Financial Times comenta ainda que as importações brasileiras da África cresceram de US$ 3 bilhões para US$ 18,5 bilhões de 2000 a 2008, enquanto as exportações brasileiras para o continente subiram de US$ 1 bilhão para US$ 8 bilhões no mesmo período.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

OS TERRATENENTES DO BRASIL (13): HOLOCAUSTO INDÍGENA E DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL

O Direito dos Autóctones e dos Bandas-Forras

A multidão não tem idéia de sua condição e precisa formar-se pelo conhecimento para não ser iludida pelo poder.
A história do Brasil esconde-se em suas fímbrias os crimes de sua história e não pretende investigar para buscar a verdade, pois seria colocar em cheque os criminosos que pertencem ao autoritarismo do Estado. Os crimes escondidos por vezes tiveram a conivência daqueles que deveriam proteger a legalidade. A escravidão está muito além de suprir a liberdade, e, dentro dela escondem-se os crimes que mancharam, e mancham o país, que clama por justiça e não encontra os ecos necessários para manter a liberdade, não querendo comprometer aqueles que um dia proclamaram a ditadura como forma de governo, tiranos culpados de suas ações que são protegidos, evitando-se abrir a caixa de Pandora fétida, repleta de males e sofrimentos.
O Brasil surgiu em outros porões, daqueles navios tumbeiros, que atravessaram o Atlântico numa diáspora sem precedentes, fornecendo a escravidão como solução as necessidades dos colonizadores terratenentes, capitão das Capitanias Hereditárias, onde o nome não nega a opressão de mando de seus interesses[1]. Proclamou-se a escravidão anterior a independência irrestrita que deveria fomentar a liberdade, mas sempre anistiaram os criminosos.

Os documentos destes crimes foram lançados ao fogo por quem deveria protegê-los para usar como provas judiciais, ordenada por Rui Barbosa enquanto Ministro da Fazenda e levada a cabo por seu sucessor na Pasta, Tristão Alencar Araripe, efetivada a 13 de maio de 1891, para evitar que uma campanha indenizatória movida por ex-senhores de escravos[2], lançando na fogueira toda inquisição do Brasil, consentida pelos agentes desta infame condição que perdurou por quase quatro séculos, sendo o último pais a promover a liberdade dos escravos, no porvir de outro século que exigia novo modelo de interesses de produção. Anterior ao ano de 1888 foram idealizadas leis inócuas, que nunca foram respeitadas ou cumpridas. Os terratenentes obrigaram manter intocáveis o direito às terras, aprovação de 4 de setembro de 1850, onde somente um cidadão, os ‘Homens bons” podiam ter os títulos de propriedade[3], perdendo-se a maior oportunidade de fomentar uma reforma agrária digna e sem atropelos. Após a libertação da escravidão, abandonou-se uma massa pelas estradas para fora das fazendas.

“Fabricaram” leis inócuas como a Lei Euzébio de Queirós aprovada em 4 de setembro de 1850, que proibia a importação de escravos, incentivada por pressão inglesa, mas sendo intensificada clandestinamente[4]. A Lei do Ventre Livre, fornecia ao rebento nascido após 1870 a liberdade,[5] mas mantendo a ligação mãe e filho até a maioridade; logicamente que o fazendeiro não queria o ônus de manter a criança promovendo a alforria de mulheres grávidas. Havia maior interesse na vinda de homens cativos robustos e saúde perfeita para desenvolver a plantação de cana de açúcar e o uso das minas auríferas.[6] Depois a lei do sexagenário que seria colocado em prática a liberdade ao escrqavo após completar 60 anos, para evitar novamente um custo para manter um escravo idoso[7]. A guerra do Paraguai em 1864 dava a liberdade aqueles que defenderia o pais, substituindo seus senhores nos campos de batalha, fazendo com que defendesse a pátria que lhe fazia cativo.

Deste lado do Atlântico preconizou-se ainda um dos primeiros holocaustos, silenciosamente praticado em uma população nativa que não se submetia as exigências, pois não se sujeitavam como índios mansos. Quanto aos nativos, que a história pejorativamente chamam de índios, tiveram a sina de por um momento serem usados como guias de reconhecimento da “terra nova”, até o momento que as incursões necessitaram de braços para o trabalho mais pesado para manter os interesses dos colonizadores. Foram encurralados e mantidos em guetos enquanto suas terras eram saqueadas, exploradas e roubadas. Tupis, guaianases, carijós, aimorés, tupinambás, tapuias, tamoios, kaingang, xokleng, guaranis sendo que estes três últimos estavam no espaço que levavam para a região dos pampas, interesse português para alcançar o Estuário do Rio da Prata, local das riquezas espanholas. Foram perseguidos ao extremo obrigando uma deslocação constante, fazendo-os abandonar o litoral e penetrar nas matas do interior, chamados de bugres em condição de menosprezo[8].

As áreas devastadas onde eram locais de aldeias, tornaram-se vilas submetidas às vontades dos terratenentes, que completavam o interesse em tomar posse daquilo que não era considerado habitada, pois em bula de demandas da igreja, interessada na expansão de seu poder, um Estado dentro do Estado político, considerava os nativos não humanos podendo serem preados por guerra justa (jus ad bellum) ou seja, é justa porque é travada contra selvagens primitivos, bárbaros e pagãos que não aceitavam as doutrinas religiosas e o interesse da coroa.
Em 1568, o rei de Portugal Dom Sebastião I proibia a escravidão indígena no Brasil reafirmada em 20 de março de 1570, mas ressaltando a exceção em caso de "guerra justa" e no caso dos irredutíveis Aimoré da Bahia e do Espírito Santo, inimigos declarados as incursões dos colonizadores. Esta provisão de Dom Sebastião, em só permitir a escravidão forçada em caso de “guerra justa”, nada adiantou na prática. Nem lhes serviu a anterior emissão da Bula Papal “Veritas ipsa”, de 9 de junho de 1537, que os reconhecia como “verdadeiros homens”, mesmo que fossem gentios, sem conhecimento dos ensinamentos de Cristo.

As reduções organizadas pelos jesuítas ao sul do continente foram atacadas pelos bandeirantes, pois as reduções reuniam índios mansos que já tinham o manejo da agricultura, sendo de maior valor de mercado do que os “índios bravos” como os ferozes tapuias, de "língua travada".
O século XVII predominou o controle da Holanda sobre os mercados africanos, e por serem inimigos declarados da Espanha e com a unificação das Coroas Ibéricas pelo reinado do Filipes da Espanha de 1580 a 1640, houve a ocupação do nordeste por parte da Holanda no período de 1630 a 1654, interrompendo o tráfico negreiro.
Os terratenentes voltaram-se então para a preação e do uso do trabalho escravo indígena os "negros da terra". Houve um aumento de demanda deste tipo de mão de obra o que provocou uma alta nos preços do escravo indígena, que custava em torno de cinco vezes menos que os escravos africanos.

As leis datadas de 5 de junho de 1605 e de 30 de julho de 1609, proibiam a escravidão de indígenas, sendo que em 10 de setembro de 1611 revogava-se as duas anteriores com outra lei que permitia escravizar os nativos aprisionados em guerra ou rebelião,sendo que seus adversários, que promoviam combatê-los, somente podiam vendê-los depois de liberada a guerra com aprovação de Portugal, podendo ainda adquirir índios aprisionados por outros indígenas, que mantinham o costume da antropofagia.
A preação dos indígenas tornou-se atividade rendosa o que intensificou os ataques a partir de 1619, dos bandeirantes contra as reduções jesuíticas espanholas do sul, escravizando os guaranis em massa, levado a cabo pelos bandeirantes buscando a preação do indígena, um meio de subsistência e fácil enriquecimento, mas que se valeram disto para ampliar o domínio de território que pertencia a Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, que jamais foi respeitado[9] e que tinha como resistência a cidade de Nuestra Señora de la Asunción, no Paraguai, expandida até o vale do Rio Paraná. Os ataques não se resumia aos ataques as tribos ou reduções do sul do Brasil, mas se estendia ao nordeste, tanto que, em 1689 Manuel Álvares de Moraes Navarro foi enviado para combater tribos do Vale do São Francisco, convocado pelo Governo-Geral, Matias Cardoso de Almeida para enfrentar os "índios bravos" do Ceará e do Rio Grande do Norte em sucessivas campanhas que aos poucos tiveram resultados contra os tapuias que foram mortos ou se deslocaram mais pelo sertão para que houvesse mais liberdade aos terratenentes de usar terras para implantação da cultura da cana de açúcar ou expansão de manadas de bovinos. Os bandeirantes chamados para combatê-los foram pagos por cabeças cortadas a "fio de espada ou adagas"e quando apresentadas aos terratenentes lhes valeram glebas de terras doadas em sesmarias[10], perdurando até meados de 1694[11] a carnificina aos indígenas do nordeste.

A "Terra Sem Mal", hoje é apenas reflexo da alegria dos autóctones verdadeiros ocupantes do Brasil que clamam por direitos, padecendo do Mal sem Terra, pelo avanço da pecuária e da monocultura eterna da cana de açúcar nos latifúndios que desalojam os verdadeiros habitantes originários.

As consciências dos homens livres não admitem as mentiras impetradas pelo silêncio dos porões que escondem o segredo das fraquezas da Nação, que não consegue se libertar dos grilhões de seus fantasmas históricos, para encontrar sua real identidade.

Referências:

SCHWARTZ, Stuart B. – Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1988.

BOXER, Charles.A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial,Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil, São Paulo, Melhoramentos, 1976.

TEJO, Limeira. Brejos e Carrascaes do Nordeste. São Paulo. Cultura Brasileira, 1937.

MOURA, Clovis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. Assessora de Pesquisa Soraya Silva Moura. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. Editora Hucitec, Edusp. 2000

CUNHA,Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil.São Paulo:Companhia das Letras,2002.PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Notas:

[1] Na época do grande apogeu das minas o valor do escravo inflacionou, sendo os valores do cativo aplicados na década de 1730, entre 40 ou 50 mil réis e no auge da exploração aurífera passou a ser vendido por até 200 mil réis.

[2] Antes do fim do império, entre julho e novembro de 1888, havia pouco menos de um cento de representações encaminhadas ao Legislativo para ressarcir prejuízos dos terratenentes, ex-senhores de escravos. Na República, durante o Governo Provisório, criou-se um banco para receber as propostas de indenizações. Estes proprietários foram diretamente a Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, requerendo seus direitos, abolidos após a Lei Áurea propondo ressarcimento com a extinção do trabalho escravo. A resposta foi direta e incisiva:
"Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido. 11 de novembro de 1890". Em nome da "fraternidade e solidariedade com a grande massa de cidadãos que, pela abolição do elemento servil, entrava na comunhão brasileira", mandou queimar, em 14 de dezembro daquele ano, os documentos do Ministério. Optou-se em destruir documentos necessários à indenização com efeito de decisão política e econômica.

[3] A Lei de Terras, nº 601 de18 de setembro de 1850 foi uma das primeiras com legislação específica para a questão fundiária. Esta lei estabelecia a compra como a única forma de acesso à terra e abolia, em definitivo, o regime de sesmarias. Junto com o código comercial é a lei mais antiga ainda em vigor no Brasil. teve sua origem em um projeto de lei apresentado ao Conselho de Estado do Império em 1843 sendo encaminhada porBernardo Pereira de Vasconcelos, tendo sido regulamentada, em30 de janeiro de 1854, pelo decreto imperial nº 1318.

[4] Algumas leis form feitas abolindo o tráfego de escravos. A principal dessas leis foi a Promulgação da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831, que declarava livre escravos importados a partir daquela data, com duas exceções e prevendo penas para o tráfico de escravos:
Art. 1º. Todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres. Excetuam-se: 1º. Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a país, onde a escravidão é permitida, enquanto empregados no serviço das mesmas embarcações. 2º. Os que fugirem do território, ou embarcação estrangeira, os quais serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fora do Brasil. Art. 2º. Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do art. 179 do Código Criminal imposta aos que reduzem à escravidão pessoas livres, e na multa de 200$000 por cabeça de cada um dos escravos importados.""
A Promulgação da Lei Feijó, declarava livres os escravos que entrassem no Brasil, vindos de país estrangeiro. Intensifica-se o tráfico clandestino de escravos, entrando no país, trazidos por embarcações norte-americanas ou francesas, fugindo assim ao controle das patrulhas inglesas.

A lei nº 581, de 4 de setembro de1850 obrigava-se cumprir uma lei anterior, de 7 de novembro de 1831:
Art. 1: As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação é proibida pela lei de 7 de novembro de 1831, ou havendo-os desembarcado, serão apreendidas pelas autoridades, ou pelos navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de escravos. Aquelas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porém que se encontrarem com os sinais de se empregarem no tráfego de escravos, serão igualmente apreendidas e consideradas em tentativa de importação de escravos.
Art. 6: Todos os escravos que forem apreendidos serão reexportados por conta do Estado para os portos donde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fora do Império, que mais conveniente parecer ao governo, e enquanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares.
Eusébio de Queirós Coutinho Matoso Câmara

[5] Banda-forra era filho de brancos com negras escravas que originavam o mestiço. O Banda-forra era um termo usado para quem também comprasse metade de sua liberdade e poderia trabalhar para si aos domingos e fazer um “espojeiro”, pequena roça de milho e alimentação de sustento ao redor de um cercado da casa, onde havia o espojadouro, lugar onde um animal domesticado se espojava recolhido à noite.
Lei do Ventre Livre(ou Lei Paranhos): O Partido Liberal comprometeu-se publicamente com a causa do nascimento de crianças a partir daquela data, 28 de setembro de 1871. Segundo o disposto na lei, os filhos dos escravos - chamados de ingênuos - tinham duas opções: ou ficavam com seus senhores até a maioridade (21 anos) ou poderiam ser entregues ao governo. Na prática, os escravocratas mantiveram os ingênuos nas suas propriedades, tratando-os como se fossem escravos. Em 1885, dos 400.000 ingênuos, somente 118 ingênuos foram entregues ao governo - os proprietários optavam por libertar escravos doentes, cegos e deficientes físicos.


[6] Esse padrão demográfico foi ampliado com as descobertas das minas auríferas dos séculos XVII para o XVIII, havendo migração intensa para a região. Neste momento intensificou-se o tráfico de escravos para a América portuguesa, na época o maior do continente. Entre 1701 e 1720, houve demanda de 292 mil escravos, onde a maioria era para uso exclusivo em minas de ouro. Entre 1720 e 1741 houve aumento de aproximadamente 312 mil escravos que vinham para abastecer o setor aurífero. Entre 1741 e 1760 o tráfico manteve sua lucratividade enviando 354 mil escravizados para manter o ritmo do setor. A lucratividade estava tanto no setor das minas quanto no setor de transporte de mão de obra escrava feita nos navios tumbeiros. (“Slave Control And Slave Resistance In Colonial Minas Gerais, 1700-1750”. Journal of Latin American Studies, vol.17, número 1, maio 1985.)

[7] A Lei n.º 3.270, também conhecida como Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotejipe, foi promulgada em 28 de setembro de 1885, e garantia a liberdade aos escravos com mais de 60 anos, com compensações financeiras aos seus proprietários. Os escravos que já estavam com a idade entre 60 e 65 anos deveriam "prestar serviços por 3 anos aos seus senhores e após os 65 anos de idade seriam libertos". Poucos escravos chegavam a esta idade e já sem condições de garantir seu sustento.

[8] Na época do descobrimento, havia no sul do Brasil 247 mil índios, segundo estudos do antropólogo Darcy Ribeiro. Essa população foi sendo dizimada ao longo dos séculos. Um dos momentos dramáticos dessa história foi o encontro dos índios com os tropeiros.

[9] “Todos os esforços para estatizar a política culminaram num só ponto, a guerra. A guerra, é só ela, permitem fornecer um motivo para os maiores de massa, sem, assim, tocar-se no estatuto da propriedade” Adorno

[10] O desenvolvimento do Brasil é desigual na amplitude do vasto território onde os terratenentes não plantam e não deixam plantar. Na America temos, conforme define Darcy Ribeiro, os povos testemunhos que são aqueles que originaram os povos da America como astecas e incas, de outro lado há os transplantado que são aqueles deslocados de um lugar determinado para um novo lugar, tendo como exemplo os Estados Unidos e Canadá. Depois há aqueles que formam outra estrutura de tantos povos quanto houver para serem miscigenado,como a amálgama do Brasil.

[11] Frente à complicação que os conflitos na Ribeira do Açu e seus afluentes estavam tomando a partir de 1687, o governador-geral do Brasil, Matias da Cunha, convocou um Conselho de Estado em que todos os teólogos, ministros, oficiais maiores e mais sujeitos de grau votaram para que os conflitos do sertão do Rio Grande fossem considerados como guerra “justa, devia ser ofensiva,e os prisioneiros cativos”. Ao ser sabedor da preparação do paulista Domingos Jorge Velho rumo a Palmares, para combater os negros aquilombados, o mesmo governador o pediu para atalhar a viagem e demorar-se no Rio Grande, para combater os índios sublevados. Disse Matias da Cunha ao paulista, em carta: “Espero que não só terão todas as glórias de degolarem os bárbaros, mas a utilidade dos que aprisionarem, porque por a guerra ser justa resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que fossem cativos todos os bárbaros que nela se aprisionassem” (PUNTONI, p. 111)