sexta-feira, 15 de junho de 2018

Benzedeiras, Criações e Parteiras: Bairro Jardim São Luiz, São Paulo

História publicada em 23/07/2008 link:


Naquelas paragens do bairro incipiente, com ar interiorano do Jardim São Luiz, no final da década de 50, médico era artigo de luxo e criança era tratada com chás de mato herbário, que curava muitos males, amém!

Nas hortas, comuns em todas as casas, haviam couves, cenouras, pimentões e amoras pretas que não davam tempo de madurar, pois "zóio de criança é maior que a barriga", práticas comuns para o básico familiar de verduras e legumes, também eram cultivadas plantas de medicina caseira, erva cidreira, mato santo, hortelã, arruda, carqueja e tantos outros quanto necessários que foge o nome. O amargo boldo, ruim que nem fel expulsava e purgava toda bicha intestinal. O moleque, meio amarelo, magrela era logo empanzinado de uma pancada de coquetel de ervas, que nem se sabia qual curava.

Era no meio de tudo isso que estava outro segredo escondido: a cura das benzedeiras, criaturas que viviam a fazer o bem ao seu modo.
Dizia toda mãe: “Dona Maria benzedeira, veja lá esse rebento mirrado.” A velha senhora com toda sua sabedoria, ao redor dela, mãe e cria, ou melhor, uma “renca de fios", que mãe de hoje, em cidade grande, não agüentaria. Sentava o “bichinho” no colo materno e benzia, em frente ao moleque meio moribundo, proferindo uma reza incompreensível, que curava porque somente Deus entendia e escutava as benzedeiras de uma maneira que só vendo pra crer.

Ela recorria àquela ladainha, com muito santo ao redor, a segurar na fronte da criança a imagem da Virgem Maria, e, de repente o conforto para a criatura era tanto que se largava nos braços da mãe, aliviada calmamente dormia. Depois a benzedeira se despedia mãe e filho, cumprimentando com a mão calejada pelo trabalho e pelo tempo, dizendo: “Vai pra casa, Deus acompanhe!”.
Essas rezas salvaram crianças e alentaram muitos pais, quebraram muito mau-olhado, quebrante e bucho virado. Onde quer que estes bem feitores estejam hoje, pelo bem transmitido sem cobrar um centavo se quer, acreditamos que tenha sido reservado por Deus, um bom olhado!

Seguindo a ladainha de cria, criava-se tudo: pato, galinha, marreco, porco e tinha até animais que precisavam de grande espaço, como vaca e cavalo, que viviam soltos, assim como eram soltas, mas responsável, nossas vidas.

Porca era coisa de engordar para a festa de Natal, no fim do ano. Precisava cuidar fazer a bicho ficar "taluda", gorda, bonita. Tinha porca que nem se mexia de tão "parruda", por só mastigar, comendo milho, abóbora, as folhas e legumes que o pai plantava. E tudo quanto lá se "punha" a bicha engolia.

Num dia de festa trouxeram a maior porca que tinha no chiqueiro. Chamou-se no morro um especialista em "furar porco", que veio com uma faca bem comprida e pontuda, um punhal, e o ritual começou. Um corre-corre de homens e mulheres, aquecer água, preparar uma prancha de madeira para deitar a bicha, e um só golpe, debaixo do sovaco da coitadinha, de quem, diga-se de passagem, não se podia ter dó, pois senão não morria. Um grito de porca estridente, água quente preparada e um “depelar” de couro com navalha, ficava bonita, toda branquinha.

Corta pra cá, corta pra lá, separa a banha pra fritura, o “fato pro sarrabulho” dos portugueses, ou o sarapatel dos baianos, o pernil pra assar, o carrê pra costelinha. E, com todo o cuidado, a bichinha foi sendo esquartejada ou "debulhada", como alguns comentavam.
Depois de tanto esforço os homens brindavam com uma "cachacinha madurada” d’um barril de carvalho. Era festa simples e pura, na ajuda mútua de um bem que não tem preço.
O chiqueiro era lavado de tempos em tempos, mas mesmo assim exalava cheiro forte e a política da boa vizinhança era o melhor remédio. O que não serve para você não serve para o outro, e como dizia o velho: “quem gosta de sujeira é o homem”. Com o tempo o chiqueiro foi desativado.

Num belo domingo, nossa casa estava uma bagunça. No poço d'água o pai colocou uma bomba enorme, antes das famosas bombas Rymer. Com um motor e uma polia de transmissão acionava umas varetas grossas de aço, de seis metros cada uma, rosqueadas entre si por luvas de latão e que trabalhavam internamente em tubos, acionando uma peça de couro dentro de outra chamada cebola. Esse vai e vem da vareta dentro do tubo fazendo a sucção da lingueta de couro na cebola submersa na água, com o movimento do motor no volante, trazia água para cima. Era um mecanismo moderno e dispensava o esforço de tirar água no sarilho, que cansava os braços de tanto puxar água de poço com trinta e cinco metros de fundura. A modernidade chegava aos lares com a água encanada.

De tempos em tempos essas varetas enferrujavam e quebravam, não acionando a água para a superfície das caixas impermeabilizadas com piche e feitas de tijolo de barro. Por esse motivo estavam lá alguns homens para ajudar o pai a tirar para fora os tubos e varetas, e trocar a peça avariada. Puxa com o grifo, segura, puxa de novo, trava com a morsa, puxa mais uma vez e assim iam saindo, uma a uma, as barras de cano galvanizadas.

Naquele mesmo dia, corriam para cima e para baixo as mulheres com panos alvos, bacia e água de outro lugar, pois a bomba estava sendo arrumada e, naquela agitação toda, confundiam-se as vozes. Minha curiosidade voltou-se para o barracão das comadres e, na ousadia típica da criança, entrei na cozinha, que possuía um piso mais baixo que o quarto. Meus olhos arregalados se assustaram com um ritual jamais imaginável. Parecia que iam, naquela festa toda, matar a mulher que estava deitada na cama com as mãos agarradas a estrutura roliça da cabeceira, com uma toalha próxima a boca, uma bacia de água fervendo do lado e de pernas bem abertas, nua. Uma tal de parteira, especialista no caso, como o homem da faca que, no caso, era o especialista em porco, iria lhe arrancar o fato, quem sabe pro “sarapatel de gente”.

Nunca imaginaria que isso pudesse acontecer: de repente um choro de criança, a parteira segurando o feto (e não o fato) embrulhado numa toalha, e a mãe soando aliviada. Olharam pra mim, tão assustadas e espantadas quanto eu, que me pus a correr sem saber pra onde. Atravessei o canteiro onde os homens estavam consertando a bomba e suas varetas, sumi pelo terreno afora, atravessando a horta familiar e até hoje não voltei pra saber se arrumaram ou não a bendita bomba.

O que fiquei sabendo é que nasceu o Tonho, um menino forte e robusto, e que tudo aquilo era para alegria de sua querida mãe, pois, como sabemos, mãe é um bem-querer sagrado pelo dom de dar a luz a uma criança, mais especificamente um jardinense.

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