A MARCHA URBANA
DO PROGRESSO: A CHEGADA DOS BÁRBAROS
Deparei-me
com uma gaveta enorme e pesada de um móvel antigo que foi um dia uma camiseira.
Dentro da mesma havia um “baú do tesouro”. Lá havia um pouco mais de uma dúzia
de fotos também antigas e amareladas. Pareciam falar de um momento congelado no
tempo e espaço de mais de meio século.
Como extrair da fotografia a concepção histórica?
Agrupei-as com estes "heróis" que um dia conheci por afinidades familiares, indo recolher alguma "arqueologia" daquele momento conversando com pessoas de nosso convívio
Sempre escutei algumas "lorotas", como se dizia, a parentela reunida. Mas possuía uma dificuldade enorme em saber quem era tio, sobrinho, madrinha, os quais no entusiasmo das mais alegres conversas ruidosas e gargalhadas de alguém no auge do burburinho. Comentavam o crescimento do Bairro da Vila Nova Conceição.
Este crescimento revelava-se na demografia, pela vinda do imigrante e ainda pelas correrias repentinas das parteiras mais famosas do lugar, Dona Benedita e Dona Sebastiana, que estavam sempre preparadas para o socorro de futuras mães aflitivas na hora do parto. As condições médicas não tinham a qualidade hospitalar da atualidade, pois o custo de uma maternidade era coisa muito dispendiosa, não havendo como cada família operária arcar com o custeio da mesma.
Morávamos na chácara de meu avô, Manuel do Santos, terras de arrendamento da família Tomazelli, pois nunca usufruiu de áreas devolutas, nunca foi grileiro profissional. Localizava-se na esquina da Rua Jacques Felix com a Rua Baltazar da Veiga.
Era considerado um local "adiantado", tendo o "Grupo
Escolar Martim Francisco", onde estudei mais tarde, na esquina das ruas
Jacques Félix com Domingos Fernandes, local da Capela Nossa Senhora da Graça,
depois renomeada de Paróquia São Dimas, aonde meu pai Ernesto, vindo de
Taquaritinga, interior paulista, fixou "moradia" junto com seus pais
e irmãos, onde participou ativamente na construção da paróquia, rodeada por
amplos terrenos ainda vazios e fez parte da congregação nos tempos do frei Justino.
Na década de 1950 a paróquia necessitava expandir, ter mais área física para receber os fiéis que chegavam na “Vila Nova” em expansão e deste modo o pároco Arnaldo adquiriu parte do terreno de Dona Joaninha, que fazia fundos com a Paróquia São Dimas.
As procissões de
momentos religiosos festivos saiam da Paróquia Nossa Senhora da Graça, na Rua Domingos
Fernandes e caminhavam até o Largo da Maná, hoje Praça Dom Gastão Liberal
Pinto, onde havia o encontro com os leigos e religiosos da Paróquia Santa Terezinha,
no Itaim Bibi, vindos da Rua Clodomiro Amazonas.
Muitos representantes da congregação franciscana atuavam na região da Vila Nova Conceição e Itaim Bibi, como Frei Domingos, Frei Justino, Frei Bento, Frei Ildefonso, Frei Canizio, Frei Leonardo e bem posteriormente a isto o Padre Pallacius.
O terreno
da Confederação Nacional da Indústria, CNI, ficava na esquina oposta a Paróquia
Nossa Senhora da Graça, entre a Avenida Santo Amaro com Rua Domingos Fernandes
e Jacques Felix que no início da década de 1940 era um grande capinzal onde se guardava
as carroças e os animais utilizados pelos vendedores de seus pães da padaria de
nome Avenida localizada nos Jardins, e também abrigou, por algum tempo, o campo
de futebol do Sporting Club de Vila Nova Conceição.
Do lado
oposto ao CNI localizava-se a farmácia do Sr. Barros, homem conceituado, que
nas palavras dos antigos era "quase médico". Prescrevendo receituário
próprio indicando remédios e formulações da prática para pacientes assíduos que
acatavam o diagnóstico aplicado na vivência farmacêutica.
A prática
médica aplicada pelo "doutor farmacêutico", corriqueira ainda em
várias localidades, estava sendo questionada por dois jovens recém formados,
Renato Fairbanks e Alceu de Campos Rodrigues, que resolveram estabelecer consultório na
Estrada de Santo Amaro, importante ligação de municípios. Doutor Renato
mudou-se para a Rua Jacques Félix, próximo a residência de meus padrinhos,
Moema e Antonio Luz.
O doutor
Alceu fixou-se na Rua Bueno Brandão, a antiga Rua Ressaca, próximo a outro
arrendamento feito por meu avô, Manuel dos Santos, para cultivar rosas. Hoje um
posto de gasolina. Em 1938 os dois jovens médicos idealistas aumentavam sua
clientela, e assim resolveram concretizar o sonho dos tempos acadêmicos:
montaram a "Policlínica Vila Nova", estrutura com leitos para
cirurgias simples com condições para internações.
Quando criança, por estripulias da idade, virei um bule dentro do suporte que segurava o saco de linho onde se colocava o pó de café. Isso tudo tombou fervente do meu lado, sendo internado as pressas na ala infantil. Especialidade que foi mantida no "Hospital São Luiz Beltran", idealizado como "Beneficência Médica Brasileira". Respeitando as devidas proporções, nos moldes das beneficências "estrangeiras" que atendiam imigrantes, como por exemplo, o hospital Humberto Primo (1º), ou Matarazzo na época referência médica da América Latina.
A dupla de
médicos recebeu ainda reforço do Dr. Paulo Gomes Carneiro, que completava uma
administração eficiente instituindo a formação de enfermagem com treinamento
especializado. A "Escola de Enfermagem" era um corpo técnico
preparado por médicos brasileiros, estando localizada em residência da Rua
Amélia, atual Dr. Alceu de Campos Rodrigues. Assim a "Polyclínica Villa
Nova" passou à nova razão social com a denominação "Hospital São Luiz
Beltran", na atualidade "Hospital e Maternidade São Luiz".
O Pronto
Socorro ficava em frente à Avenida Santo Amaro, nº 734. Com esse
profissionalismo e crescimento da região surgia o "Hospital São Luiz
Sociedade Anônima", formado por médicos autênticos, não por investidores
financeiros da atualidade, que não se preocupam com a medicina, mas com os
rendimentos que a mesma oferece pelo lucro imediato.
Em 1936 a
Cidade de São Paulo foi sobrevoada pela mais avançada tecnologia alemã em
dirigíveis: o Zeppelin estava sendo apresentado na América. Foi um
acontecimento que causou tumulto no cotidiano, que por muito tempo tornou-se
comentário corriqueiro na cidade. Era início da modernidade.
O meu avô
era homem enraizado na terra, tirava o sustento dela, tudo orgânico, sem veneno.
Era agricultor e possuía sua própria plantação de hortaliças, legumes e frutas,
não sabia o que era agrotóxico, não conheceu “super” ou “hiper” mercado. Homem
alegre até na tristeza. Meu avô já não "cabia" mais no bairro. Um dia
resolveu promover uma festa com direito a grande "fuzarca" dançante
para derrubar sua casa de madeira, pois o "progresso" estava
chegando, os bárbaros invadiam a "Villa" de seus sonhos.
Convidou toda a "moçada", termo hoje ofensivo aos varões, que chegavam vindos das redondezas próximas e também do Itaim Bibi, onde seu cunhado, Joaquim de Monteiro Amaro possuía também uma chácara na Iguatemi. Subiam a "sobrinhada" por parte dos Amaros. O Zeca, Jaime, Lúcio, Paulo, Antônio e a única irmã deles, Iracema.
Convidou toda a "moçada", termo hoje ofensivo aos varões, que chegavam vindos das redondezas próximas e também do Itaim Bibi, onde seu cunhado, Joaquim de Monteiro Amaro possuía também uma chácara na Iguatemi. Subiam a "sobrinhada" por parte dos Amaros. O Zeca, Jaime, Lúcio, Paulo, Antônio e a única irmã deles, Iracema.
Por parte
da Doceira Paulista, situada na Rua Augusta, 2995, comandada pelo
"seu" Hermínio, "seu" Fernandes e "seu" Campos,
com a colaboração da família Amaro, grandes doceiros, vieram várias amigas,
entre as quais Zélia, Isaura, Chiquita, Helena, Meire, Lourdes Sola, e tantos
outros que o tempo insiste combater teimosamente a mente. Não recordando,
apesar do esforço dos depoentes.
Da família
estavam meus tios Ivo e Odete, e minha mãe Elza, contanto com a cozinheira
importante do "evento", a Ti-Maria, minha avó. O rega-bofe seria
completado com "barril" de chope de "madeira", financiado
pelos "gajos abrutalhados", no auge da juventude, para a empreitada
do desmanche.
A casa foi
ao chão depois de uma madrugada de arrasta pés, com a poeira subindo do
assoalho, e deste modo a "nossa casa, nossa vida" foi demolida. Não
fazíamos mais parte daquele espaço da cidade, não havia lugar para a taipa ou a
madeira, a cidade agora era do concreto.
Tomamos o
rumo da principal via local. A Estrada de Santo Amaro, de terra batida, ligação
de duas localidades importantes: a da Cidade de São Paulo e da antiga Cidade de
Santo Amaro, que fora incorporada como bairro após 1935. Local da construção da
Represa de Guarapiranga, que no "futuro" deveria ser implantada uma
estação balneária e para onde se deslocavam em direção a "Interlagos"
e que havia sido construído o bairro "entre as represas". Sendo a
Billings, segunda geradora de energia de São Paulo.
Atravessamos
o lado oposto do Rio Pinheiros, para fazer "minha casa, minha vida"
no Bairro Jardim São Luiz. O hospital, mais tarde, veio atrás e migrou para o
Morumbi, na Avenida Giovanni Gronchi.
Foi deste modo que descobri que as fotos falam!
Obs.:
Espera-se a crítica da crônica
ou alguma referência que some ao exposto para acréscimo historiográfico de
citações daquilo que foi as relações sociais do referido bairro.
Depoimentos de Oswaldo do
Nascimento Valente (Marujo), Odete dos Santos Amaro e Elza dos Santos Fatorelli
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