sábado, 29 de agosto de 2009

O NOME BRASIL (6): DUAS CULTURAS, IBÉRICA E BERBERE, ORIGINA OUTRA ALMAGAMADA

DIFERENÇAS ENTRE COLONOS E REINÓIS NA “HISTÓRIA DO BRASIL”,
FREI VICENTE DO SALVADOR

Sobre Frei Vicente do Salvador pouco se sabe. As fontes que dele tratam são: sua própria História do Brasil escrita em 1627, o Novo Orbe Seráfico Brasílico e o catálogo genealógico de Jaboatão. Este diz que provavelmente nasceu em 29 de janeiro de 1567 na sé da cidade de Salvador. Seu pai, João Rodrigues Palha, era fidalgo vindo com uma expedição para as terras brasílicas organizada pelo amigo Luis de Mello Silva. De três naus e duas caravelas que partiram só uma se salvou. E em uma destas estava João Rodrigues Palha. O Naufrágio ocorreu no dia 11 de novembro de 1554.
Provavelmente foi iniciado nas letras por algum capelão de engenho, continuando os estudos na cidade de Salvador, onde nosso autor tomou um maior contato com a vida urbana na colônia. Foi instruído pelos padres da Companhia de Jesus. Muito de sua instrução nas letras e de seu estilo deve-se ao chantre Manuel Severim de Faria, um erudito que conheceu quando retornou à Évora. Severim de Faria incita o frei à história, para isso põe à disposição sua seleta biblioteca.
Ao retornar a Portugal, seu navio foi aprisionado pelos holandeses, de quem ficou refém até 1627. Após a Reconquista da Bahia, termina de escrever sua “História” em 27 de dezembro de 1627, dedicando-a a Severim de Faria. Sua obra é de um valor extraordinário, que nos oferece minúcias sobre o cotidiano colonial. Sua fina percepção da sociedade colonial é que capacita Frei Vicente do Salvador não somente constatar a diferença entre colonos e reinóis, como conhecer a natureza de tal diferença. Percebe que a sociedade colonial tem uma organização específica, completamente diferente da sociedade metropolitana e as diferenças entre colonos e reinóis advêm dessa forma específica de organização[1].

“E Thomé de Sousa (...) vendo que [os degradados] não eram como o pêssego, ‘o pomo que da pátria persa veio, melhor tornado no terreno alheio’, que pediu com muita instância por muitas vezes a el-rei que lhe desse licença pêra se tornar ao reino. Contudo (...) disse quando lhe veio a licença: ‘Vedes isso meirinho? Verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca quando cuidava em ir para Portugal; mas não sei o que é que agora se me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso’.” (Frei Vicente do Salvador. História do Brasil.)

A consciência é produzida pelas relações que os homens estabelecem entre si, pelas que estabelecem com a natureza e ainda, as relações entre as nações. O movimento dessa consciência de diferença é da natureza para os homens[2]. Primeiro se percebe uma natureza diferente – aliás, o que antes nem sequer se percebia, era mera reprodução da Europa[3], para depois se perceber que os homens também são diferentes. No primeiro estágio da percepção dos homens, estes ainda possuem as mesmas características que a natureza, como o viço, a abundância, a saúde. Somente depois é que as diferenças passam a ser produzidas socialmente e alguns novos valores, como a negligência, a preguiça, a ostentação, já começam a ser apontados.

“Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra (...) porque a gente da terra se contenta somente com aquilo que os passados deixaram em uso, sem
quererem anadir outras novidades de novo, ainda que entendam claramente que se lhes há de conseguir do uso delas muita utilidade, de maneira que se vem a mostrar nisto serem todos
padrastos do Brasil, com lhes ser ele madre, assás benigna”.[4]

A incipiente divisão do trabalho se limita às relações do colono com a natureza e dos colonos entre si, não envolvendo a instância das relações entre metrópole e colônia, que é a que determina as demais. Esse é o sentido da colonização[5].
É exatamente por não ver essa dimensão – e nem poderia porque algumas coisas só se tornam visíveis com o correr da História – que ele prega pela diversidade das atividades econômicas na terra. Brandônio dedica páginas para discursar a respeito disso. Não entende porque não se produzem outras coisas no Brasil, além do açúcar, a pimenta, por exemplo, cuja navegação para o Oriente “tanto tem custado a Portugal”. Para ele, isso é um defeito de caráter herdado dos seus ancestrais, “um mal velho do nosso Portugal que não leva remédio”. No entanto, não se trata somente disso, mas de uma característica estrutural do sistema colonial. Por diversos motivos. Em primeiro lugar, a navegação para as Índias, mesmo que custosa, tem um outro significado dentro desse contexto, que é o fortalecimento do poder do Estado Absolutista. Os Estados Nacionais estão se formando uns contra os outros e o período que abarca o Antigo Sistema Colonial é um período de conflitos entre os Estados em formação pela conquista da hegemonia ultramarina. Portanto, do ponto de vista político, não tem qualquer sentido abandonar a navegação para as Índias. Em segundo lugar, olhando agora pelo ponto de vista econômico, a colonização se caracteriza pela produção de um único produto, altamente lucrativo, comercializado no mercado externo. É o mercado, portanto, que dita os produtos que serão produzidos e seus preços.

Essa mesma característica do improviso aparece de uma forma mais consistente no trecho a seguir, em que não somente se trata de um feito individual, mas de uma característica geral da terra: “(...) porque no Brasil tudo se compra fiado, e estes nestas cousas querem superabundâncias, a que os mercadores já não acudiam e era necessário fazê-los ele prover, e aviar uns e outros era infinito”. Aqui também se encontra uma inversão de costumes em correspondência àquela da inversão entre a esferas pública e a privada. O improviso é algo que passa a se tornar, com o tempo, um rótulo do colono, e sempre vem associado a um outro traço que o diferencia do reinol: a malícia.

Ao contrapor as diferentes posturas que morador e mercador têm ante a terra, o autor está implicitamente contrapondo colono a reinol e diferenciando-os. Morador é aquele que não somente reside na terra, ou seja, na colônia, como a cultiva. O mercador, que é aquele que vem do reino, simplesmente se preocupa em desbastá-la. O fato de haver uma sociedade já
minimamente consolidada, conforme se conclui do trecho anterior, muda radicalmente as coisas. A defesa da terra é uma defesa contra a exploração indiscriminada de seus recursos[6]. Reclama-se a falta de moradores porque ninguém quer vir para ficar permanentemente. Em Frei Vicente, a defesa da terra é a defesa de algo construído pelo homem contra aqueles que vêm para destruir essa organização. Não se trata mais somente da defesa dos recursos naturais. O que diferencia um do outro não é como vêem a ligação entre o homem e a terra, e sim, a ligação que o homem guarda com seus semelhantes em busca de um objetivo comum: dar continuidade ao projeto de construção de uma sociedade nova nesta terra[7].



*A história elaborada através de muitos fragmentos, constituída por anais registrados pelo poder de então, e que aos poucos são encaixados, ou desencaixados, são, por vezes impregnados de lendas e tradições locais. Cada qual extrai as conclusões das supostas ocorrências, depois de recolher subsídios sobre o assunto como provas de um processo criminal, para considerações dos fatos de então, em outra época.
Parte disso, muitas vezes é esquecida pelo investigador da história que recria a “verdade histórica”, ou, desinteressa-se por não haver relevância naquele momento, prescreve-se com o tempo e os autos servem somente como folclore, silenciando-se o processo!


[1]“O ódio ao espanhol, já assinalamos como fator psicológico de diferenciação política de Portugal. Mas nem esse ódio nem o fundamental, ao mouro, separaram o português das duas grandes culturas, uma materna, outra, por assim dizer, paterna da sua. A hispânica e a berbere. Contra elas formou-se politicamente Portugal, mas dentro de sua influência é que se formou o caráter português”. (Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala: Formação Da Família Brasileira Sob o Regime da Economia Patriarcal. 28ª ed. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 242).

[2] Ressalta-se que por consciência Marx entende toda e qualquer abstração intelectual, algo que distingue os homens dos animais e que é reavivado pelas relações de produção que os homens estabelecem entre si. Marx, Karl.A Ideologia Alemã.Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo, Hucitec,1996, p.10.

[3] Todorov

[4] “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes, e por isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias (...)”.Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956. op. Cit, p. 56.


[5] Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 73. “não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal, e, por conseguinte se não dispõem a fazerem criações de gados e outras; e se algum o faz, é em muito pequena quantidade, e tão pouca que a gasta toda consigo mesmo e com a sua família. E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o não vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de água, grandes edifícios, como na nossa Espanha, não porque a terra deixe de ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é de seus moradores, que não querem usar delas”. Idem, op. Cit., p. 18. Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956.

[6] Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil. 3a edição. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1977.

[7] Referências extraídas de: “Vida Material e Consciência da Diferença Entre Colonos e Reinóis na História Do Brasil”, De Frei Vicente Do Salvador. Milena Fernandes de Oliveira, UNICAMP

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