domingo, 30 de dezembro de 2018

As Crianças da rua amiga (RUA 25): Jardim São Luiz/São Paulo

(História publicada em 09/04/2008 no site da Secretaria da Cultura)
Mergulhando no tempo, recordando as lembranças da meninice vigorosa, aventurada a todo tipo de brincadeiras sadias, foram as primeiras fórmulas de nosso amadurecimento, do saber compartilhar com todos, o pouco que cada um possuía de melhor, e que saía do aprendizado de cada lar: respeito, virtude para formação do caráter, lição primordial de nossos pais, rudes, simples, homens e mulheres unidos pelos laços da família, nossos primeiros e melhores educadores.
A rua era nosso recreio, éramos unidos, uma verdadeira tropa de frente, buscando iniciativas nas investidas de cada projeto novo de ideais mirabolantes e, assim, acontecia tudo ao mesmo tempo. Não era virtual, era real, e as mais fascinantes brincadeiras iam saindo de idéias das “crianças da rua amiga”.
De repente, uma tábua, com três rolimãs, às vezes quatro “rodas alemãs”, conseguidas com muito sacrifício em alguma oficina, tornando-se os mais fantásticos carros de corrida de ladeiras intermináveis, deixando para trás uma poeira de satisfação, que o mais atrasado engolia sem muito prazer. Eram verdadeiras máquinas de fórmula 1 a deslizar em bandos de disputas concorridas, às vezes esfolando o calcanhar em freadas bruscas.
Na época de ventos fortes, que coincidiam com as férias do meio de ano, outro divertimento aparecia nos céus, que ficava colorido com os papagaios, quadrados, raias, pipas e outros tantos sinônimos, evoluindo, desenhando no céu azul toda a felicidade da gurizada. As rabiolas eram feitas de tiras de pano velho de algum lençol roto. A linha era 24 Corrente, que diziam não quebrar, mas quebrava, ou um cordonê, um barbante fino a deslizar numa carretilha. Os pipas eram verdadeiras obras de arte a enfeitar num colorido diferente o descampado, pois fiação elétrica era coisa rara, poucos tinham em suas residências energia eletrificada, era tudo na lamparina.
Não se sabia ao certo quem determinava a ordem das brincadeiras, mas acreditávamos que Deus a transmitia em sonho para cada garoto, ou garota. Assim, a rua enchia de alegria, gritaria, disputas sadias. Começava com o zumbido de pião na cela a “ducar”, furando o pião adversário, que errou sua manobra. Ao lançar o pião na cela (pequeno círculo no chão batido de terra), saía um som vibrante, um zumbido, que depois era recolhido, suspenso na fieira ou na palma da mão, como um troféu.
Campeonatos eletrizantes de futebol de botão mudavam o comportamento, deixando-nos ansiosos por ver nosso time batendo adversários imaginários, onde os grandes vencedores éramos nós mesmos, com nossa felicidade.
Um casal muito simpático, dona Etelvina e seu Batista, como tantos outros patrícios que vieram de Lisboa, Portugal, espreitavam nossas algazarras por entre as frestas do portão. Ela, governanta, ele, fiscal de alfândega, o furador de lingüiças, que procurava contrabando no Porto, nos embutidos caseiros feitos em Portugal, e que vieram no tempo da guerra, pela dificuldade da Europa, tentar a sorte no Brasil e se fixaram primeiramente em Pinheiros e depois conseguiram a “casita” no bairro Jardim São Luiz, em Santo Amaro.
- Ouve lá meninos, não me furem a calçada! - dizia dona Etelvina, ralhando conosco, em tom materno, carinhoso.
Ficavam a espreitar nossa marotagem em sua calçada, ao jogar as burcas (bolinhas coloridas de vidro) nas biroscas, quatro buracos em forma de L. Primeiro, a “arriscança”, depois, a “matança” dos oponentes. Ou então se jogava em triângulos eqüiláteros, desenhados no chão, não tão perfeitos na geometria, a tentar tirar as burcas “celadas” e fazer a “rapela”, que era como falávamos quando se ganhava as burcas dos outros meninos.
Já as meninas brincavam com suas amarelinhas, pulando de encontro ao objetivo, que era o céu, ou então jogavam cinco pedrinhas escolhidas nos montes de pedregulho das construções, pedra lavada de rio, não havia pedra britada, e que sentadas no chão eram lançadas e recolhidas na palma da mão, na “casa do um”, na “casa do dois”, na “casa do três” e, por último, a do quatro, e ali aparecia a campeã toda sorridente.
Havia aquelas que pulavam corda como ninguém. Com um bater constante no chão de terra, duas vigorosas braçadas davam a ordem:
- Fogo, foguinho! - e pulava-se até a exaustão ou demolir no chão com as canelas avermelhadas por alguma chibatada. Por vezes unidas aos meninos, corriam de uma queimada, uma bola de meia, com duas turmas que se digladiavam, separadas por uma risca no chão. E um pega-pega constante, contando até dez e um desembestar em fuga:
– Esteja preso! Esteja solto!
Muitas gargalhadas e zoeiras, como um bando de pardais nas árvores, descansando em suas copas, após nos refugiarmos depois da refrega do “bate-latas” e sermos encontrados no esconderijo. Por vezes aparecia uma rara bolinha de tênis que era judiada por porretes de madeira por duplas separadas por certa distância com objetivo de derrubar as forquilhas da cela defendida com garra pelo detentor dos tacos.
Muitos Pelés e Garrinchas apareciam nos improvisados campinhos do “Arranca Toco”, do Ranulfo, Maracananzinho, e o bem concorrido Campinho do Edson, onde atualmente está a caixa d’água da Sabesp, do bairro Jardim São Luiz. Todos eram bem próximos, pois para crianças não existem distâncias, separações. Éramos todos iguais com nossos sonhos.
Nós capinávamos a vegetação para formar com o roçado nosso campinho de tantas pelejas fascinantes. Construíamos as traves, que de tão “bem” feitas às vezes tinham o cipó que as amarrava desprendido e precipitavam na cabeça de um bom goleiro. Os dedões eram tipicamente sem unha, por tantos entreveros, e o calçado, quando existia, era algum Bamba ou os modernos Kichutes, os primeiros tênis industrializados de lona que vieram substituir as alpargatas de solado de corda trançada e pano. Estes tênis ficavam rotos de tantas batalhas inesquecíveis que calçavam esses atletas anônimos, que mais tarde eram substituídos pelas “chancas”(chuteiras), ou modernamente falando, chuteiras, com cravos fixados por pregos que rasgava toda a meia.
Esses garotos depois se tornaram no futebol de várzea próximos à Ponte João Dias, grandes oponentes, fazendo das manhãs domingueiras encontros de esquadras bem formadas e nomes sugestivos: Vasquinho, Vermelhinho, Esporte São Luiz, Brasília, Grêmio, Portuguesinha, Vila das Belezas, Martinica, Mirim Brasil, Internacional, Benfica, Continental, Estrela do Norte, Rubi, Onze Garotos, Maninhos, Noroeste, Bonsucesso, Macotec, Sete de Setembro, Boca Livre, Bragança e outros tantos celeiros de craques, que colocavam em prática as diabruras aprendidas por todos os recantos, pelas crianças da rua amiga, que existiram em tantos cantos de São Paulo.
Estes feitos de muitas crianças brasileiras, de muitos lugares semelhantes, de poucos recursos na época, que sem dúvida, foram construídos (e nem sabíamos o que era construtivismo) em muitas periferias ao redor da cidade de São Paulo. Essas crianças assim exerciam atividade lúdica sadia, em grupos ordenados e foram felizes ao seu modo.