sábado, 13 de março de 2010

OS TERRATENENTES DO BRASIL (17): A ELITE MACUNAÍMA

Alteridade das Culturas

"Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo". (Darcy Ribeiro)

Andei a procurar onde estava esse “fio da meada”, esse “histos” de encontro das urdiduras que partem de um ponto se entrelaça nos caminhos e se afastam e depois se encontram novamente para formar o tecido, um pano de fundo e deparei-me com um texto medieval, “Amadis de Gaula”, que causa boa polêmica entre quem o havia escrito, talvez perto de 1508, no limiar do Achamento Novo Mundo, mas o que realmente nos importa é saber sobre o conteúdo e do contexto daquele momento e de uma das mais importantes novelas de cavalaria escritas na Península Ibérica, evidentemente não excluindo a importante obra de Dom Quixote. Pegamos um trecho da tradução de Graça Videira Lopes, a partir do original castelhano de Garcí Rodríguez de Montalvo, para dar idéia do momento histórico transplantado:

“Saindo um dia de uma vila sua que Alima se chamava, e andando desviado das armadas e dos caçadores rezando as suas horas pela floresta, viu à sua esquerda uma brava batalha de um só cavaleiro que com dois combatia; conheceu ele os dois cavaleiros que seus vassalos eram, os quais, por serem mui soberbos e de más maneiras, e mui aparentados (muito bem aparentados,com muitos e poderosos parentes), muitos nojos (ofensas) deles havia recebido. Mas o que com eles combatia não pôde conhecer, e não se fiando que a valentia de um lhe pudesse tirar o medo dos dois, ou seja, afastando-se deles, olhava a batalha, no fim da qual, pela mão daquele, os dois foram vencidos e mortos. Isto feito, o cavaleiro veio de encontro ao Rei, e como o visse sozinho, disse-lhe:
– Bom homem, que terra é esta que assim são os cavaleiros andantes assaltados?

O Rei disse-lhe:

– Não vos maravilheis disso, cavaleiro, que assim como nas outras terras há bons cavaleiros e maus, assim os há nesta; e estes que dizeis não somente a muitos hão feito grandes males e desaguisados[1], mas ainda mesmo ao rei seu senhor, sem que deles justiça pudesse fazer: por serem muito aparentados fizeram grandes agravos e também por se acolherem nesta tão espessa montanha.”

É este medievo parte da Península Ibérica que chega a América, para combater ao “outro”, o nativo que é considerado agora “invasor das terras do rei”, e pouco importa se aqui estivesse anteriormente, e sim que estas terras tem, desde o Achamento, novo dono, e os antigos habitantes devem responder as leis ditadas de longe, daquelas terras vilipendiadas um dia pelas forças mouras, que ousaram invadir a Al-ANDALUS, a árabe Península Ibérica que perdurou de 711 a 1492, até novo édito para se adaptarem ou sair da Península, coincidentemente ano da descoberta do Novo Mundo...

Rechaçar todo tipo de resistência já estava impregnado no consciente coletivo e viajou com os ibéricos europeus rumo ao Novo Mundo. Os conquistadores da América tiveram na história da reconquista, algum representante da família que participou intensamente no combate aos árabes, transmitindo dentro de cada vila, de cada aldeia, dentro da cidade, a repulsa em aceitar a submissão e a negação do outro, um corpo do estranho. Esta conduta foi transplantada para a América reproduzindo o paradigma aprendido dos tempos memoráveis dos cavaleiros medievais da Península Ibérica: destruir antes de saber as intenções e pretensões do outro, não se arriscando a aproximar-se para somar culturas, mas destruí-las sem saber seu real significado, e matando qualquer liderança ou resistência existente e destruindo qualquer foco que pudesse criar dificuldades ao novo regime instituído na América, o modelo europeu. Assim o vencedor embandeirado pelo padrão da identidade do cristianismo, e aqui vale tanto o “katalon” (católico) universal quanto ao protestantismo dos Países Baixos, em não aceitar outro culto de quem quer que fosse, pois combateram em solo europeu tanto o guerreiro árabe, quanto sua crença. Talvez estejamos próximos de compreender porque os povos submissos esconderam suas crenças nas várias formas de representação do cristianismo, para introduzir o seu modelo, cabendo tanto aos autóctones quanto aos vários povos de varias regiões da África submetidos à escravidão.

O europeu, em face de uma realidade diferente não aceitaria outro domínio de outro modelo cultural e do referencial conhecido para expressar outra alteridade, a qualidade do outro. A assimilação negativa pela via da associação com o “outro” já conhecido na Península, submetida pelo poder islâmico. A idéia estava impregnada nos de Espanha e Portugal e não deixariam fortalecer qualquer grupo homogêneo que por ventura se sublevasse e se alastrasse como modelo de resistência por parte dos nativos. Foi instituído como fator predominante nas duas coroas da Península e ambas usaram esse modelo de não reconhecimento do outro, exterminando a raiz combatente.

Portugal usou a obra de catequização pelos padres jesuítas que associava qualquer rito indígena à obra do demônio em alusão àqueles que eram assim referidos na conquista, “mouros”. Os combates contra os tupis do litoral no século XVI assumiram sempre o ideal a ser mantido por longo tempo, chamadas “guerra justa”, nítida semelhança ao que foi considerada como tal em solo europeu da península contra os mouros, uma continuação as Guerras Santas medievais, com um derramamento de sangue sem precedentes, verdadeiro extermínio, o primeiro holocausto da bestialidade humana contra os nativos indefesos, que morriam com o “cordeiro imolado” da bandeira que defendiam.

Faziam também alusão ao termo “mameluco” para dar referência ao cruzamento das raças de europeus e índias, dando origem aos primeiros mestiços, provindo de “mamaluco” grafia do século XVI, conforme coloca Ronaldo Vainfas:
“Mameluco é palavra de origem árabe, mamluk, que significa ‘escravo, pajem, criado’... A palavra vulgarizou-se em Portugal possivelmente na Idade Média, derivando do termo árabe denotativo da facção de escravos turcos que, engrossando as fileiras do exército muçulmano no Egito, acabaria por fundar uma dinastia afamada por sua tirania na região. Nossos mamelucos coloniais (para não falar nos mestiços reinóis) herdaram, pois, no próprio nome, a fama de violência dos guerreiros turco-egípcios” [2].

Mesmo com todo esse controle as trocas de valores culturais entre as populações afro-muçulmanas e luso-espanholas permaneceram enraizadas ao longo do tempo e não se apagaram, mesmo que houvesse uma política de evitar sua propagação que chegaram ao Novo Mundo pelo convívio das formas culturais ibéricas, infiltrando hábitos e costumes que foram transportados para o Brasil.

Os homens-bons da comunidade, aqueles que detinham de certa forma o poder centralizado representava a elite colonial e se diferenciavam dos “homens comuns” que estavam entre aqueles que viviam no limiar do mínimo necessário para subsistência, estes eram os índios, negros e mestiços, sendo estes últimos, a verdadeira expansão, disseminado uma nova corrente de pessoas que não faziam parte do grupo dos europeus, nem se agrupavam nas aldeias e por vezes rejeitado até em senzalas, resumindo: não era branco europeu, não era indígena sendo até rejeitado pelos originais africanos.

Do outro lado tínhamos o poder instituído pertencente à nobreza lusa na condição de fidalgos cavaleiros ou fidalgos escudeiros, representante das ordens de cavalaria, a de Avis, de Calatrava e a mais importante que era a Ordem de Cristo. O grito de guerra da Reconquista Ibérica era: “A eles, com Santiago!” nítida alusão a Santiago de Compostela, baluarte dos estandartes e ícone da luta contra os mouros, uma devoção ao Apóstolo das Espanhas. Transportou-se da Península Ibérica toda a gana de rejeição identificando-se estes exploradores da conquista da América como os heróis cristãos medievais, projetando nos nativos da América seu inimigo tradicional, os mouros[3].

Bibliografia:

VAINFAS, Ronaldo, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 141-142.

WECKMANN, Luis, La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.124, 129.

Notas:

[1] Àquele que procura constantemente os conflitos, rixas, sempre em contendas.

[2] Mudéjar ou mudéjares são os muçulmanos espanhóis que permaneceram morando em território conquistado pelos cristãos, sob seu controle político, durante o processo de avanço dos reinos cristãos para o sul da Península Ibérica, que se processou ao final da Idade Média. O Mudéjar vai continuar na América, como as mesmas tradições medievais mais adaptadas ao novo continente, nos dois vice-reinados de Nova Espanha e Peru, os projetos urbanísticos e arquitetônicos serão a melhor imagem do novo poder espanhol sobre os distintos grupos indígenas. (TAWKIF; CARABAZA; CANO; GALÁN; GUZMÁN, 1999, p. 257-280).

[3] “O conceito de mourisco por nós adotado para o caso português difere muito do conceito utilizado pelos historiadores dedicados aos mouriscos espanhóis. Se para eles, os mouriscos eram os descendentes de mudéjares nascidos na Península Ibérica, em nosso caso entendemos que o termo mourisco abrangia muçulmanos de origem diversa, batizados no cristianismo, inclusive os nascidos em Portugal. Na prática, como veremos, a maioria era mesmo estrangeira, sobretudo do Norte da África, ao contrário dos mouriscos espanhóis, entre os quais predominavam os nascidos na Península”. In “Ser Mourisco Em Portugal Durante O Século XVI” Rogério de Oliveira Ribas - UFF

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