sexta-feira, 15 de junho de 2018

Caipira de Taquaritinga para Santo Amaro, São Paulo

História publicada em 17/03/2009


Taquaritinga, antiga Ribeirãozinho, é uma bela cidade do interior paulista, que fazia parte do circuito da produção de café de São Paulo e se ligava à cidade de Araraquara pela Estrada de Ferro Araraquara S.A., E.F.A., e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, C.P.E.F.

Uma coisa curiosa eram as bitolas; a Paulista tinha 1,60 metros entre trilhos, denominada bitola larga, e a ferrovia Araraquarense tinha 1,00 metro, denominada bitola métrica, o que era dificultoso, pois no encontro das composições em Araraquara era necessária baldeação de pessoas e carga! Foi baldeando novamente em Jundiaí, que voltava a ser bitola de 1,00 metro, que a família chegou em São Paulo.*

Para chegar ao destino, Santo Amaro foi completado pelo bonde 101, lugar tão próximo nos costumes e semelhanças ao interior do Oeste Paulista. Se houve baldeação foi por logística do sistema com a linha do bonde 102, Indianópolis, auxiliar da linha de Santo Amaro, mas não foi por culpa de bitola dos bondes, pois ela possuía 1,435 metros, denominada bitola internacional.

A nossa primeira casa foi construída, pelo "véio" de "tauba"**, no Jardim São Luiz, sub-distrito de Santo Amaro. Eram somente dois cômodos: uma cozinha bem pequena que "mar" cabia "trêis" pessoas, e o chão era todo de terra batida. O dormitório ficava elevado da cozinha uns trinta centímetros, bem forrado com piso assoalhado.

O pai "durmia" cedo e acordava com o "baruio" dum galo escandaloso, que era o dono do terreiro, mas que funcionava como um despertador. Quando clareava já sentia o "chero" do Moquinha, um café que perfumava a casa toda, entrando pelas narinas, "num dava pra resisti", "sartava" rápido da cama de pau roliço e colchão de capim, que era conformado pelo corpo, e de vez em quando "sentava a ripa" nele pra "indireitá", mas não tinha conserto, pois o danado tinha uns arames montados que não tinha jeito de acertar.

Corria pra cozinha pra modo de "iscutá o véio". Em cima da mesa emparelhada com duas "tauba" bem plaininha que sustentava dum lado um rádio americano de marca "Bell", enorme e cheinho de umas "varvula", com um som que ia e "vortava", um chiado danado, que já tava viciado na estação em que tocava direto música caipira, de viola, umas mais bonitas que outras.

Hoje em dia tem dupla de tudo quanto é jeito, um monte que se intitula sertaneja, de boca de sertão, mais é outro tipo, não nasceu de roça, nasceu em estúdio. Naquele tempo a música de som era de viola chorada, o pai ficava paralisado, quase nem piscava, olhava num sei pra onde, esboçava "cantá", mais num era o forte dele. Tinha uma predileção por Tônico e Tinoco, quando era os dois, ele prestava mais atenção.

Com a luz saindo dum candeeiro, com um pavio sobre um copo d'água aceso formava a lamparina que "alumiava" a cozinha com uma penumbra, e o pai juntava as mãos formando uns "par" de bicho na parede, que tinha movimento e ficava perfeito, muito bonito, na minha imaginação eles eram reais. Uma toalha de algodão forrava a mesa, sobre ela uma broa de casca dura, regado a goles do café, às vezes com leite, entregue em carroça por algum vaqueiro que fornecia de porta em porta, quebrava o desjejum.

Depois disso, o pai se dirigia pra pegar sua bicicleta no barracão de ferramentas. Eu o seguia de perto com o nosso cão de raça "vira lata" de nome "Flai". O pai colocava nas pernas das "carça" umas presilhas pra num "prende" na corrente; um chapéu de palha surrado completava a vestimenta. Dirigia-se até o portão que estava abaixo do barranco uns três metros da rua de terra, que virava barro nos dias de chuva. Despedia, sumia no "finar" da rua.

Soube, com o tempo, que o "véio" foi um grande "construto", ajudou São Paulo a crescer, levantou a igreja do Brooklin, do Socorro, espremida na atual Robert Kennedy, que já teve o nome bonito de Atlântica, subiu alguns arranha-céus na Avenida Paulista, fez junto com um montão de amigo dele o Círculo Militar do Ibirapuera. Naquele tempo o crescimento da cidade também derrubava as construções antigas, às vezes umas taperas, às vezes prédios grandes, nunca entendi muito bem sobre esse "tar" de progresso, que destrói e reconstrói.

Depois eu era aprumado pra ir pro grupo escolar, a mãe alinhava pra eu um dia "ser gente" outra dificuldade, e perguntava se eu não era quando seria?

Saía eu num sereno danado, uma neblina que fazia "fumacinha" ao respirar. Na "volta do estudo", ensarilhava uns baldes de água tirada do poço, para encher a moringa de barro pra água ficar fresquinha. Depois saía pro campos, no meio do mato, "sorto" como passarinho, cruzando às vezes com um gato do mato, "bravo toda vida", que mais tarde eu aprendi que tinha um nome mais bonito, jaguatirica, que quando acuado "trepava" nas galhadas das árvores, ou sumia no mato.

Certa vez vínhamos subindo no morro que cortava caminho, vindos de feira livre, tropiquei numa cobra de vidro. No grito a mãe soltou a sacola de lona, rolando legumes morro abaixo, saindo na disparada, a "bicha" nem ligou pra "nóis" e saiu rastejando pras moitas de sapé.

Outro bicho meio danado era o teiú, que gostava de invadir galinheiro e chupar ovo. Às vezes dava de cara com um "bitelo", bem grande, que saía chicoteando o rabo pro meio da horta, sumia. Servia para alguma panelada de fim de semana, hoje "nóis" ia tudo preso.

Eram os dois, cobra e teiú, reconhecidos como grandes predadores de roedores, que por vezes serviam-se num paiol com a reserva de milho para a criação. A palha de "mio" seca servia pra ser alisada por algum "cutelo", que com o fumo de corda dava um "pito" de primeira.

Certa vez furei o pé correndo descalço no meio de madeiras velhas, atravessou de fora a fora, uma dor "danada". O remédio foi o sumo amarelinho do fumo de corda, pilado e esparramado num paninho alvo e amarrado bem firme, pra puxar o "veneno" da ferrugem. Sarei, não morri, senão não iria "escrivinhá" estas asneiras.

Neste "linguajar" popular, aprendido entre o povo, saído devido ao descaso com o sistema educacional abandonado à própria sorte, foi aprendido por aqueles que tinham somente a obrigação de trabalhar sem mais nenhum direito. Disto advindo uma expressão linguística que se não reconhecida entre catedráticos, era bem realista e de maior respeito. Carregam a letra "r" ou faz a troca do "l" pelo "r", ou a supressão do dígrafo em que milho é "mio", que ele planta com sua ciência que jamais foi aprendida, mas observada no "silêncio caipira" de como se faz, e se repete a ação de jeito simples, sem muito rodeio. Tenho muita saudade do caipira do pai, o "veio" Ernesto.

Recolhi depoimentos de familiares, li e reli textos muito bem elaborados, escritos em "www.saopaulominhacidade.com.br". Relatos de viagens e paisagens existentes que se vislumbrava pela janela pela beleza da natureza local, e a distância a ser vencida entre São Paulo e Santo Amaro, palco de dois momentos significativos, interior e capital. Qual a relação há entre estes dois momentos?

Nossas vidas!

* Registra-se que o metrô linha 4, amarela, entre Luz e Vila Sônia, terá bitola padrão internacional, de 1,435 metros, como os antigos bondes, sendo que as demais são de 1,60 metros, bitola larga. "Vamos baldear" nos 70 quilômetros do metrô! Acabaram as ferrovias de transporte de passageiros, faliu-se a Mafersa e Cobrasma, importaram trilhos poloneses, quem sabe os trens de alta velocidade, mais de 300 quilômetros por hora, construídos pela Alstom francesa, com bitola ibérica, de 1,674 metros, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, seja a solução dos transportes para o progresso das cidades!

** As expressões tratam-se de um modo corriqueiro do falar caipira, trata-se de uma variação do dialeto da língua portuguesa fortemente influenciada pelo nheengatu, ou língua geral, do tempo da colônia, perdurando até hoje.

Sem comentários: