domingo, 29 de março de 2020

Quando em São Paulo tudo era “a granel”


Crônica original no site São Paulo Minha Cidade, Secret. Cultura Municipal em 18/10/2011

As coisas não eram conseguidas com grande facilidade, afinal o país era essencialmente agrícola, todo mundo plantava alguma coisa antes do advento das indústrias de transformação em São Paulo. Tudo era conseguido com muita dificuldade, e sempre tínhamos que nos contentar com o mínimo necessário de subsistência da prole, que não era, na maioria das vezes, pequena.
Todos trabalhavam com alguma atividade do campo, embora estivéssemos próximos à capital paulista, tudo parecia direcionado para uma agricultura diversificada de sustentação, ofertada pelas benesses do solo. Possuíamos o essencial para a subsistência: umas vagens estendidas em taquaral em "xis" pendiam seus ramos, alguns legumes, tomates avermelhados fáceis de cultivar, e uma criação pequena de galinhas, patos, leitões, que uma vez ou outra "enfeitava" um panelaço de uma grandiosa refeição, coisa de festa domingueira.
Em pequenos pés de café, amadureciam as "sementes cerejas" que a criançada adorava degustar como balas quando o fruto estava avermelhado e meio adocicado. Eram recolhidos em cestos e levados para secar e torrar, em uma panela que rodava no fogo a lenha constantemente para não "tostar" no fundo, para não ficar "amargo", essência que dava um aroma especial e perfumava o ambiente.
Os armazéns de abastecimento, por sua vez, possuíam baias feitas de tábuas de madeira, onde eram depositados os produtos a granel, como açúcar cristal, arroz, feijão, farinha, milho e quirela, estes últimos serviam de alimentação para a criação. E também bolos e polentas amarelinhas, e algumas espigas eram adquiridas por troca ou venda, por quem não havia providenciado uma "carreira de milharal" em suas hortas, modelo frequentemente usado pela escassez do dinheiro, por isso havia pequenos escambos entre os moradores locais.
As gorduras vinham das barrigadas das leitoas, abatidas depois de intermináveis crias paridas nos chiqueiros. Estes eram abastecidos com parte de abóboras, legumes, melancias, os suínos possuíam grande apetite e tudo que encontravam pela frente era devorado, e de tempos em tempos era necessário lavar os estábulos, para evitar o odor desagradável, principalmente em tempo de calor.
Com o advento das primeiras indústrias a banha da barrigada dos suínos (que não se sabia em que nível elevava o colesterol, às vezes era consumida "in natura" com o sal grosso da conservação) foi substituída pela banha Matarazzo, embrulhada em um papel oleado, em um cubo, como um tijolo pequeno, vendida no "empório" do Pedro Ferreira, atualmente o local é um posto de gasolina em frente ao Centro Empresarial de São Paulo e o hipermercado que surgiu para "exterminar" aos poucos as pequenas mercearias desse intercambio pessoal vendedor-comprador se misturavam a todo tipo de sacarias repletas de produtos da roça, onde a venda era na maioria das vezes composta por batatas e cebolas, abundantes na região. Muitos mercadores não suportaram a concorrência destes investimentos aportados das grandes lojas de departamentos e dos grandes mercados e sucumbiram, beirando a falência.

Tudo chegava atrelado em carroças, no "lombo dos burros" que possuíam a velocidade que merecia o seu trote, não a velocidade requerida pelo seu dono!

As frutas eram recolhidas e até ofertadas de tanta fartura, onde no final do ano pendiam dos pés, as primeiras mangas que alimentavam humanos e animais e caiam no chão forrando o terreiro. Um dia destes "tropiquei" na feira em uma "seriguela", vendida embalada em saco plástico, pensei que jamais fosse ver este fruto que as sementes serviam para as estilingadas no meio das matas. Se os pássaros comiam, comeríamos também, era uma teoria repassada sem muita confirmação científica, o que valia era empanturrar de "frutas selvagens".
Na horta de casa havia um pé de amoras que "forrava" na estação, repleta de generosidade que não tinha fim, mas havia finalidade. Todos retiravam o fruto, havia até quem "fabricava" geleia, que era o recheio de uma broa de casca grossa cozida em uma cúpula com abóboda, que chamavam de forno, e que servia para os assados gerais e para as pururucas dos couros das leitoas.
Mandioca era provento para as farinhas junto com o milho, socado por cacetadas constantes dos pilões, que deixavam braços moídos, não havia mecanismo engrenado, era tudo no porrete. Ate a água era a granel, "ensarilhada" dos poços dos "veios de água" puxado por um sarilho de madeira para a rotação, que quando escapava até zunia e caiamos de lado esperando somente o "baque do balde" no fundo para recuperar os movimentos.

O "industrial artesanal" fabricava sabão em pedra, deixando ferver em fogo brando por horas uma gordura de restos que se misturavam soda em mexidas constantes e que depois eram derramadas em caixotes e cortados em barras menores. A roupa ficava branquinha com o uso da pedra de anil nos tanques ou em pequenas minas d'água, quaradas em grama natural, que depois preparados por um ferro em brasas eram engomados todos os colarinhos das "camisas de missa", que, aliás, não eram muitas, e eram guardadas para o evento dominical.
Sapato era artigo de luxo, os japoneses inventaram as "havaianas de capim" que depois a Alpargatas abocanhou a ideia e deste produto e o mercado a chamou de “Alpargatas Rodas”, acredito que foi pelo movimento circular da corda do solado e o complemento do calçado era de pano "cor de burro quando foge", com dizia o povo que usava.
Havia quem vendesse leite de vacas e de cabras, falavam que o das cabras era remédio, não entendia o que curava, somente era obrigado a beber e "ponto final". Inventaram o refrigerante Cerejinha, mais barato que o "guaraná champagne", depois a tubaína, e "dávamos a vida" para consumi-los no lugar dos sucos das frutas, chamados hoje de sucos naturais.

Nós éramos crianças, não se falava que as coisas faziam mal, e nem sabíamos diferenciar as qualidades terapêuticas.
A balança mecânica "Filizzola" era o controle dos pesos dos produtos comercializados, daquilo que um dia a eletrônica mandaria para os museus, "lugar das coisas belas", das “Musas”.
Até pouco tempo a senhora Rosa e o senhor Agostinho, feirantes na região de Santo Amaro, possuíam algumas vacas, mas o progresso e o serviço de vigilância sanitária obrigaram o final das atividades. Hoje ainda vendem parte do que plantam, com licença de feirante datada de 1959, não sei qual é a fonte da juventude octogenária desses dois símbolos das duas feiras semanais do Jardim São Luiz, em Santo Amaro. Quiseram acabar de uma hora para outra, sem muita explicação razoável com a atividade depois de destruírem a Cobertura do Feirão, que fora construída, em 1968, para ser entreposto sem atrapalhar a circulação de ruas paulistanas; os dois assumiram a luta para a sua preservação e conseguiram sua permanência, e ali continuam ainda na lida diária.

Depois inventaram uma bomba fixada em tambor de 180 litros para vender óleo de amendoim ou de algodão; soja era coisa que ninguém queria, aliás, nem se sabia o que era. A coisa estava ficando moderna e uma máquina "apareceu" moendo café, que saía mais barato do que manter alguns pés para uso familiar, o que acabava com as nossas balas naturais, mas já apareciam as "toffees" da Fábrica de Doces “Bela Vista”, seguida pela sua concorrente “Confiança”. Substituíram também os pirulitos açucarados, vendidos em um tabuleiro furado, ou dos doces mais sofisticados, que eram caros para nosso poder aquisitivo, que era nulo. Era isso o que pensávamos do produto bem embaladinho que o vendedor passava a bater uma tramela e  dizendo: "Olha o Biju"!
Chocolate era artigo de luxo, e ganhar um "Diamante Negro", da Lacta, fábrica demolida há pouco na Avenida Vereador José Diniz, era um "regalo" cobiçado.
O leite tornou-se pasteurizado, não tinha mais o "perigo do leite cru" das vacas e cabras, e que foi disputado pela Paulista e Vigor engarrafando o leite em litros de vidro “gordinhos", para diferenciar das garrafas "envasilhadas" pelos produtores artesanais. Depois começaram a ensacar tudo em plástico: arroz, feijão e farinha. O açúcar ficou refinado com a Pérola e a União, e o pó de café modernizou-se com embalagem a vácuo.

Seu Antônio Oliveira dono de armazém, que muito vendeu na caderneta, acabou com as baias, os regadores de plantas não pendiam mais no armazém do Abraão, não se salgava mais a carne, ela se tornou refrigerada em câmaras frigorificas.
Diziam que isso se chamava "progresso" e nós ficamos dependentes do controle da bolsa de valores e de mercadorias, e a tal de "intempérie", controlada por São Pedro lá do céu, aumentando o valor dos preços pela oferta e procura, e deste modo mudamos também e aceitamos o novo sistema de adquirir até o que não necessitávamos na antiga cidade rural de São Paulo. O gás foi engarrafado e distribuído em cotas para alimentar os fornos modernos em substituição aos de lenha que "enfumaçavam” as panelas de ferro, a Light "chegou" e tudo passou a ser elétrico, até as nossas vidas tornaram-se fluídas!

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