A CIDADE DE SÃO PAULO: LOCAL DE PASSAGEM ANTES DA METRÓPOLE
Há em espaços e tempos históricos uma
interação de compromissos entre partes diversas que participam integralmente de
um meio e dele subsiste em trocas de informações e valores, independente do
local em que são criadas as condições para manterem-se com compromissos
firmados por participação de fidelidade entre ambos, ou seja, aquele que produz
determinado produto e envia-o para ser adquirido e produzir deste modo a
relação comercial.
Logicamente que é sempre necessária uma regulamentação
por parte do poder instituído que controla todo um sistema para que haja o mínimo
de ordem urbana para evitar abusos das partes envolvidas. São Paulo do século XIX
dependia da produção dos seus arrabaldes, onde era mantida toda produção de
lavoura de um subúrbio que estava nas imediações da cidade ainda insipiente, um
lugar de passagem que somente vai expandir-se com a produção cafeeira.
A cidade era um pequeno núcleo de contatos
entre produtores e as “casinhas de comércio” espalhadas pela cidade. Deste modo os produtos vinham de regiões como,
por exemplo, da vila de Santo Amaro, com definições de zona rural e cujos donos
eram por posse legítima de uso, e que era grande produtora de madeira e carvão
para manter a produção industrial ainda feita ao modelo artesanal e fornecia o combustível
para produção de gás que dava a condição para a iluminação da cidade, além de fornecer alguma
produção de lavoura como cebolas, batatas e raízes variadas. Para tudo isso
chegar à cidade de São Paulo foram usados os carros de bois, o modelo da época
para transporte dos mais variados produtos que se deslocavam pelo Caminho do
Carro de Bois que ligava Santo Amaro à São Paulo, em uma distância que era
galgada num ritmo lento e sempre seguido por um carreiro experiente que levava
sua carga dirigindo seu carro com segurança. Para se entrar na cidade havia uma
postura a ser respeitada para que não houvesse atropelos e congestionamentos de
carros de boi que entrava nas ruas empoeiradas e precisavam estacionar sem
prejudicar o movimento corriqueiro da localidade.
Segue
abaixo matéria do jornal Correio Paulistano de 16 de setembro de 1942, com
matéria do jornalista Nuto Sant’ Ana.
Carros
de bois
Pelos anos de 1852, a cidade de S.
Paulo, despovoada e suja modorrava
ao sol ou se esfumava encolhida, na garoa tamizada
do alto como uma cinza úmida. Negros transitavam de torso nu com tabuleiros de
fazendas secas; calcetas, com
grilhões pelos tornozelos, mourejavam no eterno conserto das vielas tortuosas e
esburacadas; clérigos de batinas negras enxameavam, constituindo uma classe tão
saliente como a dos militares: boiadas rumavam para os campos realengos de
Ibirapuera; e tropas estardalhantes, encouradas de bruacas barrigudas chegavam de todos os pontos, enchendo a terra de
efêmero rumor; depois tocavam para o litoral e para a Côrte – ou regressavam ao
hinterland fecundo, em filas ligeiras, seguidas de capatazes mal ajambrados e
empoeirados, como ainda hoje se vêm,
em surtos de estranhas reminiscências, para os lados conservadores de Itapecerica.
Pelas ruas transitavam então, quase
livremente, os carros de bois, carregados de cereais, de lenha, de terra, de
pedras, de madeiras para construções. Veículos primitivos, de eixos móveis iam rangendo
longamente à tarda andadura dos ruminantes.
O carreiro de pés no chão, as calças de algodão trançado e listrado, regaçadas pelas canelas, a camisa
entreaberta, o chapéu de couro desabado, trotava à frente dos bois pacíficos,
ou aos seus flancos, de vez em quando ferretoando-os com a ponta de ferro das aguilhadas.
Esses, os únicos veículos de meados do século
XVIII. Isto é, consta também a existência, por vagas informações de fiscais e
cronistas, de uma ou outra sege, entre elas a do bispo d. Mateus, morador
semi-secular da rua do Carmo. E só. Não. Havia também os bangüês para as ásperas
caminhadas interurbanas. E cadeirinhas românticas, convidando a passeios
citadinos, idas a festas e igrejas. Mas, destes meios de transporte particular,
eram os animais, primitivamente, os índios e, posteriormente, termiminós reforçados, de bons bíceps e
boas pernas, alimentados a feijão com angu e também a milho, do qual, nas
longas excursões, levavam grossas espigas dependuradas na cintura.
De tal sorte, porém, cresceu o número de
carros, que a Câmara Municipal, por intermédio de um dos seus pares, resolveu
regulamentar-lhes o uso com umas posturas, então submetidas ao exame de uma
Comissão Especial. O autor do projeto foi o ilustre paulista, homem público e
historiador, brigadeiro Machado de Oliveira. E ficou desde logo estabelecido
que os carros de boi de Santo Amaro, vindos pela rua da Santa Casa ou pelo
Piques, estacionaram nos largos de S. Gonçalo e S. Francisco; os que entravam
pelas pontes do Carmo e da Tabatinguera, no largo do Carmo, e pelas do Açu e
Constituição, no largo de São Bento. Os procedentes dos lados de Pinheiros, Ó e
Sant’Ana, que se destinassem a Freguesia de Santa Ifigênia, podiam, depois de
descarregados, estacionar nos largos de Santa Ifigênia, no Tanque Zuniga e no
da Consolação.
Em
nenhuma rua, se, exceção deviam conservar-se os carros parados: estes tinham
que seguir pelo centro das vias públicas, um atrás do outro, de modo a não
embaraçar o trânsito. Nos paradeiros retro designados, colocar-se-iam com igual
precaução. E o artigo 9 o especifica ainda que “a carga do carro que se largar
à porta do comprador, nas ruas e praças da cidade, ficará de modo que entre ela
e a porta haja o intervalo pelo menos de uma braça para o trânsito
dos passantes a pé, ficando tão bem no meio da rua o espaço necessário para a
passagem de carros e cavaleiros”. Tudo isso tinha que ser rigorosamente
cumprido, com pena de multas dos faltosos, que variavam de 500 réis a 2$000
réis, conforme os casos e as reincidências.
Tempos depois destas posturas, estabeleceu-se
uma espécie de entreposto de madeiras de construção no largo do Bexiga,
exatamente onde há hoje um mictório. Os antigos ainda se lembram dele. Era um
barracão retangular, cercado de tábuas, tendo um vão para ventilá-lo entre
estas e o teto. O inconveniente dessa abertura é que por ela chovia. E a
umidade, não raro, danificava o material em depósito.
Quanto aos carreiros, conduziam lenha
que vendiam “às carradas” ou “às mocutas”;
verduras e frutas; e também, em um curioso veículo da época, espécie de carroça
formada por enorme quartola[1]
deitada, água para ser vendida de
porta em porta. Custavam 40 réis o barril, em 1865. Puxavam-na muares, em vez
de bois, destinando-se estes, propriamente, aos carros, aos quais se atrelavam em
cangas, formando uma junta e, não raro, conforme o peso da carga, diversas
delas.
Isso tudo, porém, ficou para trás, na
sombra evocativa de outras idades.
Vocabulário:
aguilhar: Estar alerta; ter os olhos abertos.
Ajambrar: Dar jeito em,
pôr em ordem; ajeitar; arrumar
. Vestimenta apropriada para certas ocasiões, adornado, paramentado.
braça: (latim bracchia, -orum, plural de bracchium, braço)
Medida de duas varas (uma vara 1,10 m) ou 2,20 metros.
bruaca: Meretriz.
calceta: Grilheta, Pena de trabalhos forçados, O condenado a trabalhos forçados.
Hinterland: (termo
alemão) significa a “terra de trás”, de
uma cidade ou porto. Significa também à parte menos desenvolvida de um país, menos
dotada de infra-estrutura e menos densamente povoada. Corresponde a uma área
geográfica conectada por uma rede de transportes, através da qual recebe e
envia mercadorias ou passageiros (do porto ou para o porto). O termo pode ser
aplicado à área que circunda um centro de comércio ou serviços e da qual provêm
os clientes.
mocuta: feixe de lenha amarado do cipó que lhe
dá o nome, transportado no costado das mulas ou em carroças.
modorra: (espanhol modorra).Vontade irresistível de dormir, sonolência. Indolência, apatia.
tamisar :
Passar pelo tamis, Depurar; joeirar.
Temiminó: é um termo tupi que significa "descendente".
Era um povo inimigo tradicional dos seus vizinhos tupinambás na baía de Guanabara, possuindo
traços culturais em
comum com os tupinambás e com outras tribos tupis, tais como a língua, crenças, e costumes, além da agricultura de subsistência baseada nas
queimadas.
MEDIDAS DE
VOLUME DE LÍQUIDOS
Quartola = CARTOLA:Casco pequeno correspondente aprox. a meia pipa.
Pipa:Unidade de volume de líquidos correspondente a 25 almudes.
Pipa:Unidade de volume de líquidos correspondente a 25 almudes.
Almude:Equivale a 12 canadas ou 48 quartilhos; 24 litros(variava segundo as localidades.)
Canada:espanhol “cañada”, medida de vinho. Antiga medida igual a 4 quartilhos, ou
aproximadamente 2 litros.
Quartilho: 1/4 da canada.
Porção correspondente a meio litro.