quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Zona Carvoeira de Santo Amaro

“Os sapatões barreados e as mãos sujas e calejadas pelo trabalho”


A indústria principal, ou melhor, a única indústria é a da madeira. Carvão e lenha dão vida a região; não há lavoura, nem mesmo a nossa clássica e eterna “lavoura parasitaria da terra”. Há apenas o parasitismo puro e simples, sem plantações. Donde se conclui que no dia em que se acabarem as matas...
Tira-se a madeira de lei já bem escassa, corta-se a lenha que as estradas de ferro pressurosamente adquirem e queima-se o resto para o fabrico do carvão. O chão calcinado, em breve reverdece coberto de tênue camada de capim, e que sucede uma capoeira rala e cheia de pragas. E é só. 

O homem passa adiante, de machado em punho, ateando fogo em tudo. O fogo é ali o grande associado do homem e o seu principal instrumento de trabalho. Para isso contribui poderosamente o regime da propriedade rural. O senhor do solo vende apenas o mato, o lenhador e o carvoeiro, na pressa dos lucros, por metro produzido, não tem cuidado com a terra que não lhes pertence. Usam o fogo até para substituir a capina: os troncos são partidos a dinamite.

Colônia e Parelheiros são os dois centros exportadores de carvão de Santo Amaro. Essas duas localidades tem apenas uma rua, que é a própria estrada, ladeada de casas de taboas ou de pau a pique; algumas, porém, graças aos beirais extensos e ao seu estilo colonial, deturpado pelas reformas sucessivas, demonstram que os lugares são muito mais antigos do que parecem. Não têm escolas. E, em Parelheiros, onde passam “jardineiras”, há açougue de carne verde, que é talvez o primeiro indício de urbanização.
Quando se pergunta a um trabalhador o preço do carvão, ele responde: “Na Colônia está a 4$ o saco”. Parelheiros e Colônia são dois entrepostos de carvão, que importam o que consomem e exportam o que produzem. A hegemonia na exportação de lenha cabe à estação de Engenheiro Marsilac, ou como dizem por lá ao “P 10”. Esta, então, é que desafia classificações. Seus habitante são ferroviários (urbanos) e lenhadores (semi-urbanos), e o arraial, todo de casas de taboas, tem uma vida puramente agrícola: exporta toda a sua produção...

FALTA DE TRANSPORTE E DE BRAÇOS

O carvão absorve os trabalhadores avulsos. Um “ajudante” do mestre carvoeiro ganha em média, de 10$ a 12$ por dia, salário que o lavrador local não poderia pagar. Sabe-se de um lavrador que gastou mais de trezentos contos de reis numa fazenda, tentando a agricultura, e que afinal, abandonou tudo por falta absoluta de braços e transportes. Esse bem intencionado lavrador mecanizara ao máximo sua fazenda, afim de não sentir a falta de braços, comprando tratores, caminhões, arados de discos, usina elétrica, etc. Conseguira, ainda de certa forma particular, auxilio de cerca de cinquenta contos de reis para abrir estradas e instalar escolas, mas não pode levar adiante o seu plano, por oposição dos proprietários vizinhos, temerosos de serem impedidos de trafegar, com seus carros de bois, nos caminhos pedregulhados...


Não há escolas primarias. As crianças aos oito  anos de idade ainda não sabem distinguir mão direita da esquerda. E isso junto a capital paulista, numa zona servida por três linhas de “jardineiras”, que em hora e meia fazem a ligação completa de Santo Amaro a Engenheiro Marsillac!
Largo 13 de Maio (antigo Largo da Bola) centro da Cidade de Santo Amaro

Os lavradores sem instrução, sem terras para fixar-se, abandonados a crendice e ao curandeirismo, obrigados, ainda, em razão de sua indústria, a viverem disseminados pelo mato como bichos, em núcleos esparsos e de difícil acesso, não há quem consiga civilizá-los. De vez em quando, os mais destemidos, nacionais ou estrangeiros, imundos, roídos de doenças e paupérrimos, lançam-se a uma grande aventura: chegam a Santo Amaro. Mas daí não passam...

A grande cidade[1], a famosa capital, cuja proximidade pressentem, porque lhes adquirem o carvão e porque muitos falam dela, eles não procuram conhecer.

ABAIXO:  "FOGÕES AMERICANOS UNCLE SAM" ANÚNCIO O ESTADO SP 24 JAN 1888
Têm acanhamento, talvez de sua fala cantada, de seu terno de brim remendado, de sua camisa ordinária, de seus sapatões barreados, de suas mãos sujas e calejadas.
Ou, talvez, porque saibam que a ela devem a vida miserável que levam, dia e noite no mato, esquecidos do mundo, isolados de tudo, atentos apenas à espessa fumaça que se desprende com uma vida que se esgarça do topo das carvoeiras...


Reflexões pessoais do blog
O expurgo do passado reflete na atualidade: O Estado com o seu poder e sem planos diretores apropriados para cada região, abarcam hoje os frutos plantados por gerações de abandonados a própria sorte, sem cerimônias espalhando suas extensas garras nos seus interesses políticos e financeiros. Hoje o lugar é cobiçado por uma expansão imobiliária lenta, mas firme em seus propósitos, expulsando paulatinamente estes “heróis anônimos” e criando reservas de indigentes, maiores do que no passado. São bárbaros invadindo interesses unicamente vindos de grandes conglomerados ávidos por ter a posse territorial, tendo com pano de fundo, áreas ainda de matas intocadas e mananciais perpetuados, mas por certo por muito pouco tempo. Preservação é algo obsoleto aos interesses imobiliários e a devastação é maior do que aquele modelo antigo de subsistência, que se feito à época foi por abandono do Estado e por falta de perspectivas melhores!


Integra de matéria: “O Estado de São Paulo”, 24 de abril de 1939

Gasômetro, Brás, década de  1950. Veículo da Companhia de Gás de São Paulo.Caixa d'água, chaminé e um gasômetro da Usina de Gás de Carvão. Acervo Fundação Energia e Saneamento


[1]A The San Paulo Gaz Company no início de suas atividades já percebia os limites do uso da lenha como combustível, ressaltado em relatório da diretoria de 1911: “Acredito que temos aqui um vasto campo para operações[...] Para isto, basta conhecermos as condições de vida em São Paulo, onde se cozinha com lenha, que está se tornando escassa devido ao desmatamento nos arredores da cidade, para prevermos o inevitável e constante crescimento na substituição da lenha pelo gás nas cozinhas da cidade de São Paulo”
SILVA, João Luiz Máximo da. Cozinha Modelo: O Impacto do Gás e da Eletricidade na Casa Paulistana (1870-1930)São Paulo: Edusp

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