terça-feira, 10 de maio de 2022

Amassando barro no "fim do mundo"!

 História ORIGINAL publicada no site de São Paulo Minha Cidade em 28/11/2013

Saímos da Vila Nova Conceição, na década de 50, para irmos “morar no mato”, pois assim falavam nossos parentes; mas o que poderia fazer meu pai Ernesto, um operário que como tantos outros eram “expulsos” para mais longe de São Paulo? Os recursos eram parcos, não se dava casa com as facilidades da atualidade, não havia “Minha Casa, Minha Vida”, existia somente a vida, nem bolsa disso ou daquilo, apenas uma “algibeira vazia de sonhos” de muita gente conduzida por uma garra enorme de tentar construir alguma coisa que poder-se-ia chamar de seu!

Meu pai já tinha vindo para a região de Santo Amaro de bonde e descido nas cercanias do Largo São Sebastião, atual Bonneville, onde ficavam corretores para apresentar os “jardins” que se formavam e foi através de um deles que meu pai conheceu o Jardim São Luiz, com “Z” mesmo, que havia sido regularizado no final da década de 30, mas ninguém ousava vir para “esse fim de mundo”. Hoje, está bem diferente, brinco que moramos também nos Jardins, mas que não é o Jardim Europa, nem América, mas sim o São Luiz!

O “véio” veio de lá todo entusiasmado com um bocado de promissórias nas mãos, eram as prestações de um terreno de dez metros de frente por trinta de fundos. Fez nele um barracão de madeira, bem aprumado, estilo daqueles que ele havia visto na divisa do Paraná com São Paulo, quando era moço e vivia a colher café pelas fazendas. Os banheiros eram do lado de fora, pois, a latrina era “direta e reta”, não tinha esgoto de concessionária, não tinha energia elétrica, não tinha “nada”.

O caminhão partiu lá da Vila Nova Conceição, com as tralhas de minha mãe Elza, uma bicicleta de meu pai, comigo e a mãe na boleia e meu pai na carroceria. O Fordeco velho gemia no caminho da velha estrada de Santo Amaro, comia poeira amarelada que misturava com o enfumaçado do caminhão e rasgava o tempo todo um caminho esburacado. Diante de nossos olhos parecia um “mato grosso” todo fechado, que até a luz do sol pedia licença para entrar e chegando próximo ao destino dava para vislumbrar uma ponte da Light que ligava os extremos do Rio Pinheiros, ainda de águas límpidas ou próximo disso.

Quando entramos pela rua principal avistavam-se morros para todos os lados, o meu pai tinha adquirido um terreno “que dava até para pegar o Céu com a mão” e cercado por mata verdejante, não havia na época cinquenta casas no lugar, era “bem” longe de São Paulo, e não havia nem transporte coletivo, isso era artigo de luxo, pois passava uma linha que ligava Itapecerica da Serra até Santo Amaro da viação Emílio Guerra, que passava um dia “talvez” e outro dia “jamais”!

Era ali que nós “iriamos fazer nossas vidas”, sem bolsa família sem bolsa gás, porque nem precisava, cozinhava-se na lenha. O chão da cozinha era terra dura batida, o quarto tinha assoalho de madeira, em tempo frio era quentinho e no calor fervia. O banheiro tinha chuveiro “moderno”: era um balde, amarrado em uma corda, onde havia sido soldado um chuveiro com um registro, ensaboava-se todo o corpo e depois enxaguava tudo de um só vez, e se a água não desse saia ensaboado mesmo. O sabão era feito de gordura com soda cáustica, misturado com cinzas, falavam que era pra branquear roupa, mas nelas se usava pedra de anil para o mesmo feitio, não dava para entender essas práticas, eu aceitava e acabou, morria o assunto, não havia muitas perguntas.

A “bufunfa”, ou seja, o dinheiro, era curta, mas não podia faltar para a prestação do bem mais precioso, que era o terreno, assinado por compromisso de compra e venda, que se pagava na “cidade”, na Rua Brigadeiro Tobias, para a Sociedade Paulistana de Terrenos.

Foi assim o começo de muita gente que se enveredou por esse “mundão afora de São Paulo”, não se invadia nada, tudo era comprado com dinheiro “minguado” e era pago “religiosamente”. Hoje, pode tudo, meu pai iria até gostar de ganhar um terreno, uma casa, água encanada, pois a nossa foi de sarilho em poço de 35 metros cavado no barranco onde estava a casa e a fossa para detritos era um buraco de seis metros, que se esgotava de tempos em tempos, nada da “massa” ir para o Rio Pinheiros.

Agora, no século 21, o “edil” quer cobrar “caro” o imposto, algo realmente “imposto, na marra”, mas ele não tinha nem nascido e muita gente já amassava barro na lama das ruas dos incipientes bairros paulistanos, pois nem havia asfalto.

Assim nasceram muitos bairros afastados da periferia de São Paulo e se há semelhança é mera coincidência pela periferia paulistana!

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