sábado, 8 de junho de 2019

Matadouro da Vila Clementino, Vila Nova Conceição e Itaim Bibi/SP


Vivências de uma época (original exposto em “São Paulo minha cidade em 01-10-2008)
Manoel dos Santos, conhecido pelo apelido de Salas por alguns e por outros de Piscais, veio com a esposa Maria de Melo Amaro, trazendo na bagagem somente esperança e muita vontade de trabalhar. Não tinham estudo algum e as "letras da primeira classe" foram feitas para o gasto daquilo que era necessário para o cotidiano. Vinha "recomendado", o que quer dizer que havia alguém estabelecido que se responsabilizava e comprometia-se a fixar-lhe com trabalho. No "Bilhete de Identidade do Instituto de Criminologia de Coimbra", Portugal, consta(va), no documento nº. 86696, como profissão "operário apícola".
O senhor Salas, nome de guerra dos tempos idos dos quartéis de cavalaria da antiga metrópole portuguesa, aportou por estas paragens brasileiras na década de 20. Homem forte e sem preguiça, acostumado à labuta diária, como tantos outros patrícios que vieram para o Brasil trabalhar por falta de mão de obra no campo.
Ao aportar em São Paulo, foi encaminhado para exercer o trabalho de jardineiro para a família de Julitta Prado Alves de Lima, em Higienópolis, número 8, com registro feito em 21 de novembro de 1927, em documento expedido pela "Directoria de Fiscalisação do Serviço Domestico", lei nº. 2996, de 16 de agosto de 1926. Sua esposa, por sua vez, cozinhava as comidas típicas das aldeias (pequenas vilas) de Portugal para os patrícios que trabalhavam na Fábrica de Doces Bela Vista, das balas Toffee, concorrente da Indústria de Balas Confiança.

Mais tarde, arrendou uma pequena chácara de Maneco Capinzeiro, na Estrada de Santo Amaro, que na época dava acesso ao Município de Santo Amaro, que era percorrido pelo ônibus 79, pois o bonde 104, vindo de São Judas, circulava por Indianópolis, a extensão da Avenida Ibirapuera para Santo Amaro. 
Essa chácara ficava quase em frente à farmácia do Seu Barros, hoje próximo ao hospital São Luiz, ao lado de um terreno baldio do CNI, Confederação Nacional da Indústria, onde as peladas esportivas corriam soltas nos fins de semana, e que se estendia até a Rua Jacques Félix. 
Crédito:Osvaldo Valente 
Igreja São Dimas

Do lado oposto, estava localizada a Igreja Nossa Senhora da Graça, depois a Igreja São Dimas, que dava fundos com a casa da Dona Joaninha, e a Escola Estadual Martim Francisco, na Rua Domingos Fernandes com Jacques Félix (dez mil metros quadrados que o interesse do setor imobiliário cobiça para prédios de luxo), onde parava o ônibus 80, com itinerário Vila Nova Conceição até o "Parque" Anhangabaú.

Nesse local, começou a se plantar rosas, dálias, cravos dobrados e algumas hortaliças, vagens, tomates, frutas, para consumo familiar e para um pequeno comércio do excedente.


DE CHÁCARA AO INTERESSE IMOBILIÁRIO NA VILA NOVA CONCEIÇÃO
A família, por sua vez, tendo um filho pequeno, Ivo dos Santos, começou a crescer e o jardineiro Manoel interessou-se por terras que estavam sendo arrendadas da família Rocco Tomazelli, a qual possuía comércio e transporte de carnes na Rua Afonso Braz. Na mesma rua também ficava a fábrica de massas "Pastifício Paulista". Na esquina das ruas Jacques Félix com Baltazar da Veiga, na esquina oposta à chácara do Piscais, estava localizada a "Padaria Mija na Pá", uma referência da época na região; apesar do nome pitoresco, possuía boa qualidade dos produtos oferecidos.

Estas ruas eram passagens de boiadas, que entravam na cidade de São Paulo pelo bairro da Lapa dirigindo-se para Pinheiros, seguindo pela Iguatemi, no bairro Itaim Bibi, atravessando a Vila Nova Conceição, em direção a atual Avenida República do Líbano.
Há uma epopeia que merece consideração, pois as manadas vinham do interior paulista, para abastecimento de carne da capital. Das cidades de várias localidades seguiam os tropeiros, geralmente com uma manada de oitocentos a mil e quinhentos animais, controlados por, aproximadamente, quinze peões e um capataz que conhecia o trajeto. A tropa era composta pelo ponteiro, aquele que vem à frente com o berrante, juntamente com o cozinheiro, seguido por dois burros cargueiros que carregavam caixotes, as "bruacas", contendo alimentos utilizados para o preparo da comida, panelas, bules, talheres e outros apetrechos que vinham no lombo dos animais, cobertos com uma lona, o "surrão". A cada cem animais havia um peão alternado, um à esquerda outro à direita, e atrás da manada vinham, geralmente, dois homens denominados "culatras", todos bem atentos para não ficar animal perdido, como diziam: "na arribada".
As viagens eram demoradas de dez a quinze quilômetros ao dia, dependendo do terreno. De tempos em tempos, trocavam-se os cavalos de montaria por outros descansados que seguiam com a tropa. Quando aportavam em São Paulo, estavam exaustos, necessitando de uma "aguada". Próximo ao que viria a ser o Parque do Ibirapuera, onde boa parte da área era um grande charco e servia de pastos, cortado pelo Córrego do Sapateiro, formava-se pequenas lagoas, onde os animais eram introduzidos num tanque, que servia para refrescar e para higienização, controlados pela vigilância sanitária, próximo ao Viveiro de Plantas Manequinho Lopes.
O Matadouro Municipal da Vila Mariana, na Vila Clementino, na atualidade a Cinemateca Brasileira, era o fim da linha da jornada. Fazia-se parada no Largo do Matadouro, ou Largo Senador Raul Cardoso, entregando a encomenda para abates e atender demandas da cidade que acolhia um grande número de pessoas, vindas de toda parte do Brasil e do mundo.
Há de se dizer que a cidade já seguia seu desenvolvimento para estas áreas mais próximas. Na Avenida Santo Amaro com a Rua Afonso Braz, foi implantada a Empresa Endoquímica, logo depois a Mead Johnson Company, pioneira da produção na nutrição infantil. Hoje, a área é ocupada pela Faculdade Metropolitana Unidas, FMU.
O senhor Piscais tinha o tino mercantil dos mouros e, aos poucos adaptado ao mercado, conseguiu manter uma licença de venda sobre o nº. 58589, controlado pela "Secretaria da Fazenda para Serviço de Ambulantes", para trabalhar em feiras-livres. A primeira foi na esquina da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio com Anajaz, hoje São Gabriel, próximo ao largo da Maná, na atualidade Praça Gastão Liberal Pinto.

Na mesma praça, mais tarde, instalou-se o "Bar do Turista", que se localizava bem abaixo do nível da rua havendo uma escadaria de acesso, e que servia o "sortido", composto de tudo um pouco, ou "prato feito", o PF, que insistíamos em mudar para PC ("prato cheio").
O senhor Piscais acordava pela madrugada, como todo feirante, e seu espaço já estava demarcado para trabalhar por "conta", como dizia. Pegava os bondes abertos, em que levavam com mais facilidade suas mercadorias, deslocando-se com cestos repletos de flores, ajudado pelas filhas, Odete e Elza, para outras feiras-livres localizadas na Alameda Lorena, Rua José Maria Lisboa, Avenida Paulista ou Avenida Doutor Arnaldo, próximo ao Cemitério do Araçá, onde as floriculturas que ali existem hoje são remanescentes dessa época.
Além da labuta diária das feiras-livres, que tinha ajuda familiar, cultivava as terras de sua chácara da Rua Jacques Félix, número 42, na Vila Nova Conceição, a base de enxada e regador, com água extraída de um poço largo, introduzindo a "cegonha", uma espécie de gangorra, à moda árabe, onde enchia os baldes para a rega cotidiana da plantação. Podava videiras, ensinava sem cerimônias o "segredo" do corte, com três "olhos" do broto à frente do galho, que na época da primavera se alastrava verdejante. Fazia os amarrilhos em feixes de flores a serem expostos nas feiras, no dia anterior, deixava tudo preparado em cestos de vime ou, quando eram próximas ao Itaim, levava em um carrinho de madeira, mais pesado que a carga a transportar.
Mesmo sem muita leitura, mas com uma experiência passada de geração à outra, o mestre em cultivo seguia um principio básico de manejo da terra: abria uma pequena vala circular e depositava tudo quando sobrava daquilo mesmo que cultivava (talos de legumes, cascas de frutas, restos de folhas que misturava com a terra), formando um húmus fértil, estrume o qual ainda era reforçado com esterco que se recolhia em cocheiras da vizinhança, ou de cavalos que pastavam por ali comendo o capim verdejante e abundante.
Limpar galinheiro era labuta de criança, que raspava as travessas dos poleiros o esterco que era recolhido para fertilizar algum pomar. Esse rejeito de estrume de galinhas produzia húmus orgânico, que, puro, queimava a plantação, precisando que fosse "descansada" num processo semelhante ao conhecido atualmente como compostagem, que era tão comum aos agricultores da época, que desconheciam os agrotóxicos atuais. De tempos em tempos remexia-se tudo com a forquilha, uma espécie de garfo para facilitar a fermentação deste composto.

Outra tarefa era separar as galinhas botadeiras. Às vezes, uma chocava no mato, e era bonito ver a mãe coruja, digo galinha, com toda ninhada marchando de volta pra casa. Esses pequenos afazeres serviam ao adágio que anunciava: quem perde o serviço do "meninito" é "tolito", e que, em outras palavras, queria dizer que quem não orientava as crianças em pequenos afazeres, era um bobo.
Havia na Avenida Iguatemi a chácara de seu cunhado Joaquim Monteiro Amaro, que tinha também larga experiência agrícola. Neste local, a terra tinha uma textura preta que parecia de melhor qualidade de plantio, talvez pela proximidade com o Rio Pinheiros, que havia sido retificado, havendo inclusive castanheiras e jabuticabeiras e plantas ornamentais, mas o que rendia alguns "trocados" mesmo era fazer mudas de hibiscos para construir cercas vivas.
As plantas frutíferas eram feitas enxertias, geralmente em pé de limão rosa, resistente a pragas, e, às vezes, vinham buscá-los para mudar alguma árvore de lugar - uma ciência que só os jardineiros tarimbados possuem - e iam fazendo um círculo profundo em volta, dizendo "cuidado com o espigão", que era a raiz central existente em toda árvore, que não podia ser afetada, senão a árvore não vingava.
Os filhos de seu Joaquim, Fausto, Jaime, Paulo, Alcides, apelidado de Nego, muito contribuíram para o esporte do Itaim, no antigo Canto do Rio, Marítimo, na atualidade o Parque do Povo, na Cidade Jardim.

O São Paulo Futebol Clube fez de tudo para levar o Fausto para o profissionalismo, mas Seu Joaquim não consentiu, pois, filho seu, tinha que trabalhar e ter profissão. Assim, tornou-se torneiro mecânico e o esporte perdeu um atleta, coisas dos tempos!
Mais tarde, o progresso expandia por São Paulo, que crescia e precisava implantar um transporte que levasse maior número de operários. No governo paulista do professor Jânio da Silva Quadros, surgia o papa-fila, da Fábrica Nacional de Motores, FNM, tentativa de constituir-se um veículo feito integralmente no Brasil. Um ônibus articulado, "moderno", onde se separava o motorista, que ficava na boleia (cabine do motorista) do cavalo (o que puxa a carga), e os passageiros atrás deste, havendo uma porta de entrada nos fundos e outra no centro maior para facilitar o "descarregamento".

As Padarias Charlú e Nice, situadas na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, que mantinham cocheiras na Vila Nova Conceição, perderam seus espaços para vendas de automóveis da A.P. Gonçalves, do Seu Ramos. Eram novos tempos de governos democráticos, iniciados por Juscelino Kubitschek e João Goulart, empossados em 31 de janeiro de 1956, época dos anos dourados.
O prédio do seu João Ribeiro, onde estava a sede do Clube de Futebol General Couto de Magalhães, que fervilhava de gente nos bailes da Rua Santa Justina com a Avenida Santo Amaro, em memoráveis apresentações, das ofertas de cravos às damas para conceder a dança, perdeu seu brilho. Os cinemas Excelsior e Radar, da Avenida Santo Amaro, O Star/Lumière, da Rua Joaquim Floriano, eram as sensações, pois estavam no auge os astros das telas.
Os chacareiros do Itaim Bibi e Vila Nova Conceição e que mantinham também pequeno rebanho leiteiro não podiam mais manter os negócios. Muitos antigos moradores se deslocaram para o Brooklin, Chácara Santo Antônio e Santo Amaro. 
Esses dois pioneiros da jardinagem não poderiam permanecer onde começaram e foram para outra periferia mais longínqua, pegando o bonde 101; chegaram a Santo Amaro. Mudaram, conforme suas posses, para o bairro Jardim São Luiz, e o "Senhor Manoel, o Piscais" e seu "cunhado Joaquim", tentaram manter o cultivo da terra. Ainda conseguiram manter sua horta familiar de verduras e legumes, alguns pêssegos e mexericas, mas a cidade não abrigava mais as condições iniciais de seu desenvolvimento. São Paulo transformava-se: de agrícola e pastoril, tornava-se industrial, em nome do progresso.


Este depoimento foi concedido nos meses de maio a julho de 2008, por Odete dos Santos Amaro e Elza dos Santos Fatorelli, filhas de Manoel dos Santos, o Salas ou Piscais, de nosso relato, e sobrinhas de Joaquim Monteiro Amaro, em condição de oralidade dos fatos e fotos. Quanto ao relato sobre as boiadas, agradecemos ao antigo tropeiro Cyro Mascarenhas de Campos, que muito contribuiu para o complemento desta história.

O exposto estará sujeito a quaisquer sugestões e críticas, passíveis e possíveis, para ser mais próximo da verdade histórica. Quase esquecia: o "gajo" era meu avô!
Publicado em 01-10-2008 com o título de “Matadouro da Vila Clementino e as feiras do Itaim”



Testemunho Publicado em 30/09/2008 em saopaulominhacidade por Mário Lopomo

Praticamente nasci no Itaim,1939, e ano seguinte fomos morar na Rua Domingos Fernandes na Viça Nova Conceição. Voltamos novamente ao Itaim, em 1942, na Rua do Porto (Leopoldo Couto de Magalhães Junior). Seu texto me levou a minha infância. Seu relato é perfeito com as denominações de ruas. Naquele terreno do CNI, foi construído um prédio que tinha uma enorme placa com o nome da confederação. Ali morava Ronald Golias nos anos 1960.Era comum ver Manoel de Nóbrega e Carlos Alberto por lá. O Tomazzeli era vizinho de meu avô, na Rua Visconde da Luz, Itaim.
Conheci Fausto,Jaime, e o Nego foi meu colega de time (Esplanada)e trabalhava de torneiro mecânico na oficina do Miguel Ritter, Rua Clodomiro Amazonas. O matadouro da Vila Mariana era mais conhecido como Tendal. Com respeito ao Couto Magalhães era uns times forte, que infelizmente 
o caminhão que carregava os jogadores se acidentou na curva da, avenida Santo Amaro com a Brigadeiro, onde morreram 4 pessoas. (General Couto Magalhães, um time de futebol,texto de minha autoria, publicado em 19 /03/07) Quem vê a Vila Nova e o Itaim hoje, não acredita no que está escrito ai, mas eu sou testemunha, disso.

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